O fantasma Maine, 115 anos depois

Quase 115 anos atrás, 266 jovens perdiam a vida em um incêndio criminoso em um navio de guerra dos Estados Unidos – o couraçado Maine – que fazia uma “visita” a Cuba. Coincidentemente, o capitão do navio e quase a totalidade dos oficiais estavam em terra, na cidade de Havana, no momento do incêndio e escaparam ilesos. As vítimas eram jovens marinheiros, a grande maioria de 18 a 22 anos de idade.

A partir desse terrível acidente, os EUA acusaram a Espanha de ter sabotado o navio e dá início à guerra hispano-norte-americana de 1898. Cuba estava prestes a alcançar sua independência e dispensava a “solidariedade” do Tio Sam, mas essa “ajuda” de última hora serviu de pretexto para que o vizinho do norte se achasse no direito de intervir em Cuba quando achasse necessário, inclusive, um pouco mais tarde, ocupando parte da província oriental de Guantânamo.

O fato repercutiu na imprensa de todo o mundo na época, mais pela morte daqueles jovens do que pela deflagração da guerra em si. 266 jovens inocentes.

Hoje uma tragédia que envolve aproximadamente o mesmo contingente de jovens comove o Brasil e o mundo. Contexto e cenários diferentes, mas um fato em comum: quase três centenas de jovens mortos em um incêndio ocasionado, tanto na guerra como na festa, pela ganância do capital.

Claro que não houve premeditação no trágico acidente em Santa Maria (ao contrário do buque Maine) e tampouco é sensato personalizar as causas do incêndio na boate Kiss em fulano ou beltrano. Caça as bruxas neste momento é o menos acertado e, invariavelmente, promove terríveis injustiças.

O vilão em questão é o vale tudo dos interesses capitalistas da indústria do entretenimento que, da mesma maneira que a indústria da guerra (ver a questão do armamento da população) explora a juventude como bucha de canhão dos seus poderosos interesses. A aspiração dos jovens em se divertirem e se confraternizarem não pode ficar à mercê apenas dos interesses da iniciativa privada.

São forças poderosas que mantêm o funcionamento de várias casas de shows pelo país afora, com direito à apologia às drogas, vulgarização do sexo e disseminação de preconceitos e machismos sem que o poder público consiga intervir. Pessoas sendo marcadas como animais para se ter o controle de quem entra e quem sai, comandas individualizadas que impedem o ir e vir sem que o cliente comprove que nada consumiu, público confinado em “currais” cujas saídas se assemelham a um brete para gado.

A irrelevância das vidas humanas para os comandantes destes eventos é condenável. O poder econômico fala mais alto, seja para explorar povos de um país vizinho ou os seus próprios concidadãos. Afinal, o dinheiro é o mesmo.

Culpar o dono da boate Kiss isoladamente é sempre a saída mais fácil daqueles que preferem fugir ao debate central que é o desenvolvimento de políticas públicas para a juventude, em múltiplas esferas, capazes de combater a irresponsável mercantilização do lazer e da recreação.

Certamente o imperialismo continuará usando vidas de inocentes para justificar suas guerras de rapina. Mas a tragédia de Santa Maria deve servir como marco para o Estado promover uma reviravolta na relação com o comércio do lazer, impondo regras mais rígidas capazes de impedir que catástrofes desta dimensão não mais volte a ocorrer. Mudar esse cenário é o melhor tributo que podemos oferecer em homenagem aos que morreram.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor