O fogo da vingança

Tivemos há pouco em Vitória uma semana repleta de eventos e espetáculos artísticos de boa qualidade; entre eles, o Festival Nacional de Teatro, o Seis e Meia com Negra Li e Idalina Dornellas, a V Mostra Produção Independente Cinema em Negro Negro e a exibição de filmes de ótimo nível nos cinemas da cidade.

Em meio a espetáculos teatrais de boa qualidade, vídeos representativos da cultura afro-brasileira com uma bela e merecida homenagem a Markus Konká e a abertura de uma exposição na Galeria Homero Massena envolvendo 14 artistas, encontrei tempo para assistir a "Bastardos Inglórios", de Quentin Tarantino.

Mais uma vez o diretor americano surpreende o público e reinventa a História num filme no qual todos os personagens são canalhas, a maioria por convicção, alguns pelas circunstâncias. Sarcasticamente, ele brinca com inúmeros clichês do cinema americano beirando à caricatura ao retratar pseudo-heróis invencíveis empenhados em exterminar os exterminadores.

Um soldado alemão doce e gentil tornou-se uma celebridade por ter assassinado 300 pessoas. Ele é o homenageado na noite das longas chamas na qual a ficção subverte a História e forja a vingança. O cinema foi o local escolhido para a sua realização num espetáculo fantasmagórico e infernal.

Presentes no local, Hitler e seus asseclas, acompanhados de todo o seu séquito de aristocratas da infâmia em uniformes de gala ou em requintados ternos da moda, o que suscita o sorriso ambíguo do espectador; e nos divertiríamos muito mais se não soubéssemos o que foi maquinado e executado por aquelas grotescas figuras esbravejantes. Mas os bastardos inglórios não estão interessados em questões políticas e sociais; eles querem apenas cumprir o seu dever de matar e de escalpelar os nazistas fardados; os que são deixados vivos recebem na testa cunhado à faca a insígnia vil do partido que levou a Alemanha e o mundo ao caos e à degradação.

Em algumas das cenas mais exuberantes do filme, o caçador de judeus e o oficial da Gestapo ostentam com mestria a falsa dignidade, o cinismo vaidoso e o demonismo barato numa atuação perfeita dos atores. São diálogos primorosos e, ao mesmo tempo, assustadores de tão torpes e abjetos.

O filme mostra enfim o comportamento daqueles indivíduos que em qualquer época e em qualquer regime político "cumprem o seu dever", fazendo da adulação, da crueldade e da desfaçatez uma prática corriqueira e legítima. Acresce-se a isso a fascinação dos nazistas pela arte da representação no que ela tem de mais superficial: as poses, os gestos grandiloquentes, o fingimento convincente.

Sem dúvida, a riqueza maior deste filme está em suas leituras múltiplas: da referência à vida real de personagens emblemáticos do século XX, à ambição doentia e destrutiva e à vingança cega e implacável.

Num filme de Tarantino não podia faltar a cena em que todos apontam a arma uns para os outros tornando impossível a fuga e defrontando o espectador com as situações sem saída nas quais a vida fica por um fio. Todos são bastardos, todos são inglórios. Não há vencedores. Perdeu enfim a humanidade.

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