O golpe deu mais um passo

A batalha contra o impeachment é cruenta, complexa, de duração e desfecho imprevisível. Nem se fale em subestimá-la. Com a velocidade dos desenvolvimentos em curso, será perdida se se estabelecer uma visão estanque e estática sobre os campos em confronto, ou se se desconhecer as mutações produzidas neles em cada uma de suas fases e etapas.

No tempo em que se aprovou a Comissão Especial da Câmara dos Deputados para apreciar a admissibilidade da denúncia contra a presidenta da República, o vetor central das lutas é a garantia da democracia e do Estado de direito contra o golpe.

A vitória desta terça feira última na eleição da Comissão Especial, estabelece um novo quadro na correlação de forças em confronto, numa batalha em que
ressaltam os atropelos institucionais.

A Constituição Federal prevê os casos em que se institui o voto secreto no Congresso. Entre eles, não está incluído o voto para eleger comissões em geral no Congresso, a Comissão Especial em particular. O presidente da Câmara, Eduardo Cunha, o impôs sob violência institucional.

O Regimento da Casa prevê a composição da Comissão Especial referida mediante indicação dos líderes de bancadas. Em nenhum caso é prevista a possibilidade de chapas avulsas em confronto. Mais uma violência institucional de Eduardo Cunha a impôs, e exigiu uma ginástica medíocre de nomes, que nem grêmios estudantis utilizam mais.

O rito congressual para admissibilidade do impeachment está sub judice, aguardando parecer do Ministro Edson Fachin para juízo do STF. Há vazios entre a Lei específica sobre o tema, de 1950, a Constituição Federal e o Regimento e, nele, Eduardo Cunha respondeu a questão de ordem apresentando um rito arbitrário e monocrático. Uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, protocolada pelo PCdoB – à qual se uniram como amigos da causa numerosas entidades da sociedade civil – provocou a manifestação do Supremo. Não obstante, Eduardo Cunha atropela a tudo e todos.

Assim, na Câmara dos Deputados, a Casa do Povo, vão sendo derrogados o Regimento e o próprio colégio de líderes como organizadores do rito de deliberação em matéria sensível e excepcional para o país e sua história.

É todo um sistema político e o papel das bancadas que vão sendo atropelados. Cunha dá um apagão no sistema e suas normas para que, nas trevas do casuísmo, todos os gatos parecessem pardos. Assim ele pretende que se mantivessem fidelidades para se ver livre do seu destino incontornável, que é a destituição da presidência e eventual cassação do mandato – seja no Conselho de Ética e plenário, seja no STF mediante ação da Procuradoria Geral da República.

Hoje, entre as instituições da República, o fator de maior instabilidade é a Câmara dos Deputados, o que já é um profundo desserviço à nação. Combinada aos arbítrios da Lava-Jato, põe em perigo conquistas fundamentais da democracia e Estado de direito.

Turvadas as águas, a oposição vai à pescaria. Confirmam a tradição golpista feita de crueldade e falta de escrúpulos, com sagacidade e sem maiores requintes. Acelera o passo, e seu núcleo político centrado nos tucanos joga no agravamento da instabilidade política, econômica e social do país. Docemente constrangidos, festejam o rito decidido por Cunha. Depois pretendem expeli-lo.

A mídia plutocrática se apressou em editorializar o golpe, como foi o caso do Estadão dos Mesquitas e da Globo dos Marinhos.

Unidos, parecem julgar que a história se confundiria quanto às motivações e arbítrios. Em pleno século 21, uma das maiores e mais pujantes democracias eleitorais do mundo – e ainda a mais jovem, em tempo de vigência – vai sendo golpeada.

Precisaremos esperar mais cinquenta anos para que venham depois pedir “desculpas” ao país e à opinião pública pelo “erro” que cometeram também em 1964 e 1989? Como será lembrada nesse mesmo tempo a atual legislatura da Câmara dos Deputados, onde figuras menores da República se saciam de interesses inconfessáveis e atentam contra a normalidade política e estabilidade institucional do país? Até mesmo figuras que se imaginava maiores se apequenaram. Lá em surpreendente medida não atuam mais partidos e líderes, mas radicais livres, sujeitos a negociação política um a um.

Não se deve subestimar a gravidade desses fatos e as ameaças que representam. Em prol da democracia já se travaram batalhas históricas memoráveis, ao custo de muitas vidas, que a fazem o esteio fundamental para o povo brasileiro prosseguir na jornada da construção e afirmação nacional, soberana e de progresso social, fortalecedora de suas instituições.

Nas condições absolutamente excepcionais de temperatura e pressão atuais, é indispensável o senso de urgência para barrar o golpe nas ruas e tribunas, nas redes sociais e associativas. Nosso povo tem nisso um forte e poderoso ativo político e precisa pô-lo em ação.

Mas toda guerra depende da direção justa. Comando, foco e amplitude são decisivos para vencer.

Comando instituído como Estado-Maior, com forças experientes para batalhas no seio dessas instituições, com capacidade de concatenar os movimentos entre o Executivo e o Legislativo, a consciência jurídica democrática, com as ruas e forças vivas da sociedade e dos indispensáveis movimentos sociais mobilizados. O próprio comando precisa ser mais amplo que o governo e seu principal partido de sustentação.

Foco, porque é central bandeira ampla e radical da defesa da democracia e do Estado de direito contra o golpe. É a batalha tática de alcance estratégico, que define se o país vai para o norte ou para o sul, se se mantém um governo avançado do povo ou se obtém uma derrota estratégica para as forças progressistas brasileiras, latinas e mundial.

Foco também, em outro sentido complementar, porque se é verdade que sem o apoio das mobilizações sociais essa seria uma batalha de Itararé – segundo a lenda, a que não houve -, também é verdade que o golpe se desmonta no Congresso e, eventualmente, com apoio no Judiciário. Precisam se coadunar, mas exigem uma pressão concentrada sobre os parlamentares, na votação em todas as fases do processo em curso.

Amplitude, que é corolário para a luta no Congresso, como também porque barrar o golpe é, ao mesmo tempo, reunir forças em torno de um consenso que apresente perspectivas para a normalidade política, estabilidade institucional e saídas para a crise econômica com a retomada do crescimento. Isso precisa unir forças largas, porque, no fundo, a luta neste momento é entre consensos polares e opostos que vão se formando em torno das saídas para o impasse.

Todas essas exigências implicam forte protagonismo presidencial, liderando as forças antigolpistas e o novo consenso, a partir da condição e força de ser governo num regime presidencialista, capaz de iniciativas indelegáveis no contexto de defesa da democracia e da legalidade, enfrentar a crise e oferecer novas perspectivas de futuro para a maioria do povo, ou seja, medidas econômicas que sinalizem proteção aos interesses populares e nacionais, estimule a atividade econômica.

Não faltarão à presidenta os verdadeiros democratas e patriotas, a esquerda política e social, as ruas enfim. Não apenas por ela, pelo seu mandato legítimo conferido pela soberania popular do voto, mas sobretudo pela democracia e pelos interesses do país. É uma força poderosa. É preciso determinação e clareza para vencer.

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