“O lutador”: cruel engrenagem

A estrutura que constrói e destrói mitos é dissecada pelo diretor estadunidense Darren Aronofski em seu filme, que mostra a capacidade de Mickey Rourke e Marisa Tomei em retratar os deserdados sem máscaras e sombras.

Mais do que revelar Mickey Rourke com as marcas do tempo no corpo e de suas escolhas na carreira, “O Lutador”, do estadunidense Darren Aronofski, desnuda os mecanismos da derrocada de um mito e a voracidade com que a estrutura que o criou o consome. Ídolo rebelde nos anos 80, o ator chegou a dizer que se preocupava com questões sociais, para além de sua carreira. Numa entrevista confirmou sua participação, como descendente de irlandeses, na luta pela independência da Irlanda. E que ajudava a financiar o IRA (Exército Republicano Irlandês), que lutava para que isto acontecesse. Foi o suficiente, e não só por sua opção pessoal pelo boxe, para a mídia e os chefões de Hollywood retirar-lhe seu status de estrela.


 


 


O resultado foi a queda para o nível de coadjuvante e a imposição de um ostracismo difícil de ser admitido numa época carente de atores que tenham mais que talento: visão de que a arte não se resume à sua condição de produto, num mercado prostituído. Ela pode, sim, ser usada para construir variáveis níveis de participação em mudanças sociais, políticas e econômicas. E, no caso do IRA, sua posição continua válida, porquanto a submissão do povo irlandês  à Coroa Britânica permanece.


 


 


A arte, no entanto, tem suas vertentes e surpresas. Em “O Lutador”, Mickey Rourke é Randy “Carneiro” Robinson, estrela de espetáculos de luta livre, daquelas que faziam as delícias dos aficionados brasileiros nos anos 60 e início da década de 70. Época em que Teddy Boy Marino e Cangaceiro enchiam a telinha com seus golpes e artimanhas, para elevar o índice de audiência. Sem a ferocidade e os golpes dignos dos gladiadores, eles ficaram para trás. Diferente de Randy que perambula de ringue em ringue atrás de míseros dólares, que mal dão para pagar o aluguel. Porém, ele insiste em continuar encenando combates sangrentos para garantir o prazer do público, sedento de violência e sangue. Percebe-se o quanto isto é impiedoso logo na abertura do filme, quando Rourke surge sentado numa cadeira, que mal comporta seu volumoso corpo, tombado pra frente, com dobras da barriga entre as pernas. É uma cena e tanto, reveladora das cobranças de uma carreira em franca decadência.


 


 


Lutador tem derrocada escrita no próprio corpo


 


 


Que Rourke tenha se submetido a esta revelação, mostra o quanto de talento e entrega, ele é capaz. Equipara-se à do surgimento de Marlon Brando, o coronel Kurtz da novela de Joseph Corand, “No Coração das Trevas”, do qual Coppola tirou o seu clássico, “Apocalypse Now”: apenas sua cabeça aparece e temos toda a dimensão do personagem. Mas esta devastação não se restringe a esta cena, ela se prolonga ao longo do filme, como se o roteirista Robert Siegel e Aronofski quisessem realizar as escrituras de sua derrocada em seu próprio corpo. Elas emergem a cada sequencia, como uma cicatriz aqui outra ali, até se fixar no meio de seu tronco, visíveis, amedrontadoras. Contribui para isto, as mutações da face do próprio Rourke, longe da que fica diante de Kim Basinger, numa feira-livre novaiorquina, em “Nove e Meia Semanas de Amor”. Não parece a mesma pessoa. Faz o/a espectador/a confundir personagem e intérprete, por mais que, em outras circunstâncias, fosse um admirável trabalho de maquiagem. Mas não é.


 


 


Existe ali, no entanto, uma dicotomia entre as exigências da engrenagem da construção de mitos e a existência de lutador, cuja vida privada o público ignora. Enquanto a primeira constrói, à sua revelia, uma imagem de Hércules, de gigante, invencível, ele tem de pagar por suas escolhas. Estas são, em sua maioria, restritas ao cotidiano de voltar para casa e encontrá-la fechada pelo senhorio, às conflituosas relações com a filha Stephanie Robinson (Evan Raquel Wood) e a stripper Cassidy (Marisa Tomei) e a admiração dos garotos que o rodeiam em seu trailer.


 


 


A máquina de manutenção dos mitos, impiedosa, o quer, pouco se importando se já não mais suporte suas cobranças. Gruda nele, de maneira cruel. Escreve em seu corpo e dirige sua existência. Quando ele se retrai, cheio de debilidades, sai à sua procura, arrasta-o de volta para continuar sugando-o. Impressiona a montagem sutil com que Siegel e Aronofski constroem esta dialética do devorar do mito. A massa comporta-se como ariranhas; exalta-se, grita, clama alto por seu nome, ele lhe dá o que ela anseia: golpes mortais, corpo dilacerados, sangue.


 


 


Para massa, lutador é imortal e imbatível


 


 


Para essa massa, Randy não tem vida própria, nem sente os efeitos do tempo, nem guarda marcas no corpo. Ele é simplesmente olimpiano, igual a Atlas, que carrega o planeta nas costas. Deve continuar no panteão dos deuses para seu gáudio. Sempre jovem, forte, invencível, imortal. Não lhe parece exigir demais de um ser humano que sabe jogar com suas carências de afeto, de compensações pelo cotidiano massacrante, de deficiências do sistema, de relações familiares equilibradas, à custa de sua própria sobrevivência. Assim, ele lhe dá o melhor de si, enquanto tenta juntar os cacos de sua vida privada e conquistar alguém para escapar à solidão. Compreende a dificuldade de alcançar seu intento, escapar àquilo que ele mesmo construiu, embriagado pelo afago sem fim dos fãs. Numa destas vezes, ele se vê como um dos aposentados lutadores em fim-de-semana, detrás de uma banca de livros, vídeos e fotos: soturnos, sonados; entregues à decadência, com raros lampejos de existência, ao serem chamados a uma foto com os fãs.


 


 


Uma cena delicada, feita com sensibilidade por Aronofski e forte entrega de Rourke, que mantém o olhar perdido em algum momento do passado. Só com ligeiro olhar, ele faz o/a espectador/a entender o que é viver naquele ambiente de seres fraturados, cuja vida naquele instante é pegar restolhos de instantes de glórias passadas.  Embora, profundo, o clima deprimente não se impõe; Aronofski equilibra-o, levado Randy ao encontro de uma família de fãs, que o rodeiam para uma foto. É um momento adverso da cobrança feita pela massa, indistinta, marcada, porém, por uma insistente lembrança. Uma apenas. Mas o suficiente para o espectador apreender a intenção de Siegel e Aronofski, pois não se está diante de uma história de um lutador em conflito consigo mesmo; o que se pretende é ampliar sua percepção da engrenagem que o mantém neste conflito. Randy pode se insurgir contra ela, num rompante de sagacidade. E, ainda que ela pareça supostamente onipresente, ele o faz das mais diversas formas, descendo aos degraus mais baixos possíveis, conservando às duras penas uma dignidade à altura de seu mito. Ela, a engrenagem, entretanto, não enxerga suas escolhas desta maneira.


 


 


Filha e namorada veem como um ser acabado


 


 


Poder-se-ia dizer que há muito determinismo na abordagem de Siegel e Aronofski, que o ser humano pode e deve se insurgir contra o que o oprime. Tipo de iniciativa atribuída na dramaturgia burguesa ao ser individual ou aos heróis, distantes do coletivo. Quando, na verdade, iniciativa igual a esta, exige a identificação das fragilidades da engrenagem, para ações coordenadas e coletivas. Tarefa difícil para Randy, acostumado à bajulação, à visão do ser olimpiano nele colada. Além disso, tais opções são bloqueadas por suas construções pessoais. Principalmente sua inabilidade na convivência conflituosa com a filha Stephanie e a stripper Cassidy. Elas o veem quase que como a massa: um ser incapaz de mudar seu comportamento. Então, pregam uma marca em seu corpo e a mantem ali, feito tatuagens e cicatrizes.


 


 


Elas poderiam olhar para si mesmas; o conseguem, cada uma à sua maneira. Stephanie ao acreditar, em princípio, na convivência com o pai, e Cassidy no encontro de alguém que a vê diferente dos demais freqüentadores da boate onde trabalha. Elas são, em diferentes circunstâncias, iguais a ele. Estão à margem de uma sociedade que não as absorve, Stephanie por ser gay; Cassidy por desnudar-se perante homens e mulheres noite afora.


 


 


 


Delas, Cassidy chega mais perto de Randy, e sob certos aspectos é seu complemento. Siegel e Aronovski fazem um claro paralelo entre ambos. Estão sempre sob holofotes, são projeções de desejos; Randy do instinto primata, da violência reprimida que não se realiza no cotidiano, pois contida em certos limites pelas estruturas sociais; ela do desejo contido, inconfesso, não realizável com o outro, tornando-se, assim, o freqüentador da boate, um voyeur. Para satisfazê-lo, ela se expõe; de todas as maneiras, ângulos e gestos. E ele, o voyeur, a devora, como corpo e mercadoria, alcançável às vezes para o leve tato, noutras pelo olhar cobiçoso, exigindo dela desprendimento e despudor. Marisa Tomei em seus revolteios, passos, ritmos, mover de corpo, passa nuances, conflitos, dimensionando para o espectador o sacrifício desta mulher, profissional, da qual se exige mais que dança; exposição; entrega, inclusive, de seus sentimentos, esquecida mais ainda de quem é e do porque está ali. Deve ser, enfim, apenas um produto a ser consumido pelo voyeur.


 


 


Marisa Tomei dá dignidade à vida da dançarina de boate


 


 


Ela sabe; mais que Randy, de seus limites, de quem é, pois continua alicerçada, dotada de objetivo. Há momentos que hesita diante das cobranças, do peso da idade, dos olhares não mais cobiçosos sobre ela, e sai à procura de alguém para se escorar. Siegel e Aronofski tomam seu partido. Há dignidade nela, humanização, visão de que se trata de uma profissional, alguém que sobrevive se expondo para prazer do outro, tão carente quanto ela. A face, o corpo alquebrado de Marisa Tomei, dimensionando seu estado; é daqueles momentos únicos no cinema, em que a arte se impõe, o ser humano se eleva.  E mais uma vez poderia ser deprimente, e não é. Há muito equilíbrio em “O Lutador”. Por mais explícita que sejam as situações, existe sempre um contraponto para evitar que ação redunde em depressão.


 


 


Na cena que Randy compreende a profundidade de sua decadência, rodeado por veteranos lutadores, o salva o convite do fã para pousar com a família; na que Cassidy apreende o limite do tempo, a chegada de Randy a arrebata. Aronofski tira, desta forma, a carga deprê da cena. Um belo recurso. Livra o filme de cair no melodrama, ainda que lágrimas possam surgir. São dois universos, o masculino e o feminino, demonstração da capacidade de o filme manter-se acima do patamar de produto, que busca atingir uma faixa de público interessada em mais que diversão. Siegel e Aronofski conseguem ainda fazer com que o espectador acompanhe estas nuances, sem firulas de montagem, movimento demasiado da câmera. Às vezes chega a ser didático, tal a clareza com que o diretor conduz o filme.


 


 


Percebe-se; claramente, a dicotomia entre a construção e a demolição do mito Randy “Carneiro” e suas contradições pessoais. Até mesmo a brutalidade da engrenagem é evidenciada. Nos ginásios, ela não tem rosto, age de forma compacta, em uníssono. Rege, assim, o comportamento no ringue, impondo o ritmo e tendo seu anseio atendido. Pouco importa se faz parte de uma estrutura, que busca, por meio da encenação, atendê-la. Ela precisa daquele instante para compensar o que lhe negam lá fora. Ali, ela é tão soberana quanto os torcedores no campo de futebol.


 


 


Aronofski reproduz, no filme, a estrutura capitalista


 


 


A massa, por mais que lhe preguem o comportamento de manada, vive, no entanto, sob o signo da anonimidade construída para tornar a estrutura inidentificável. O Leviatã que age acima de toda a sociedade e permite sua continuidade (ou dá a ilusão de permanência até erondir feito o sistema econômico estadunidense). Ela tem, no filme, diversos vértices: a massa, o promotor das lutas e os lutadores. Central, para a trama e a compreensão desta estrutura, reprodução exata do sistema capitalista, o promotor das lutas é o que contrata e retém o lucro da bilheteria e das apostas. Siegel e Aronofski o mostram em apenas algumas cenas, depois o transformam numa voz.  O suficiente para o espectador compreender seu papel na derrocada final de Randy. Ele o manipula, mostra-se compreensivo e incentiva-o há mais um combate e faz com que o espetáculo seja completo. A individualização dos personagens complementa as partes constitutivas do filme. E transforma-o numa obra de fácil assimilação pelo/a espectador/a, mesmo que interessado na nova face de Mickey Rourke e acabe blindado com sua bela interpretação.


 


 


“O Lutador” (“The Wrestler”). Drama. Eua. 2008. 115 minutos. Roteiro: Robert Siegel. Direção: Darren Aronofski. Elenco: Mickey Rourke, Marisa Tomei, Evan Rachel Wood.


 


 



(*) Leão de Ouro no Festival de Veneza 2008. Mickey Rourke: Bafta 2008 de Melhor Ator (Prêmio de Cinema Britânico) e Globo de Ouro 2008: Prêmio de Melhor Ator concedido pela Associação dos Críticos Estrangeiros nos Estados Unidos.    

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor