“O Porto”: Solidariedade
Nos filmes do diretor finlandês Aki Kaurismäki (“Homem Sem Passado”) a vida corre devagar, como se nada fosse acontecer. Esta aparente lentidão esconde, na verdade, a tipificação do ambiente onde se deslocam os personagens. Em sua maioria, proletários entregues à própria sorte. Não é diferente neste “O Porto”.
Publicado 24/05/2012 08:55
Ele situa o ex-escritor e agora engraxate, Marcel Marx (André Wilms), seu cotidiano com a companheira Arletty (Kai Outinen) e suas passagens pelo bar, mercearia e padaria de seu bairro, antes do silencioso e magro jantar em casa.
Toda a primeira parte do filme é consumida nesta tipificação, sem qualquer entrechoque, embora possamos antevê-lo na figura do garoto Idrissa (Blondin Miguel). Descoberto com seus compatriotas gaboneses num container, ele surge em rápidas cenas, como se a anunciar sua intervenção na narrativa. Mas o que Kaurismäki faz é nos preparar para, justamente, sua intervenção no cotidiano do casal Marx/Arletty e de seus vizinhos.
Marx e Arletty já não têm uma vida amorosa, apenas convivem. Acostumaram-se um ao outro, embora se amem. Falta, de certo modo, algo que os motive. É neste espaço que Idrissa ganha importância. Caçado pelo policial Henry Monet (Jean-Pierre Darroussin), ele encontra no casal o apoio salvador. E ao contrário do que possamos imaginar, ele não é o fator desestabilizador que desencadeia sentimentos represados. Há candura e tranquilidade nele. Encaixa-se perfeitamente no ambiente que o acolheu.
É uma diferente leitura do imigrante africano na França. Ele não ameaça a ninguém, tampouco quer tirar o emprego ou a “estabilidade” dos habitantes de Harve, cidade portuária francesa a poucos quilômetros da Inglaterra. Uma visão bem próxima à de Philippe Lioret em seu “Bem-vindo” (2009), que trata da proteção dada pelo professor de natação Simon (Vincent Lindon) ao jovem curdo Bilal (Firat Ayverdi), que pretende chegar à Inglaterra a nado. Inexiste xenofobia em seu comportamento e também no Marx e Alertty. Eles vêm o outro como a si mesmo: um ser em busca da construção de seu futuro.
Marx não estigmatiza o imigrante Idrissa
Ambos tratam da imigração na época de Sarkozy, derrotado pelo socialista François Hollande nas últimas eleições presidenciais. E quebram a ideia dos fascistas franceses e seus apoiadores, eleitores da Frente Nacional, de Marine Le Pen, de que o imigrante, principalmente africano, é um dos culpados da decadência européia. Portanto de sua perda de status. Formam, Kaurismäki e Lioret, assim, com a esquerda, as camadas progressistas e os trabalhadores conscientes que não enxergam no imigrante a ameaça apregoada pelos fascistas, conservadores e neoliberais dos mais diversos matizes. As causas da crise e da decadência européia são outras.
O adolescente idrissa é apenas mais uma vítima da globalização, defendida pelos renitentes neoliberais (burguesia dos centros imperialistas, sistema financeiro, conglomerados industriais e comerciais e forças políticas e intelectuais). Ao abolirem fronteiras e intensificarem o marketing global da bonança aguçam os sonhos dos marginalizados dos países deserdados. Como não poderia deixar de ser; eles procuram os ex-oásis de prosperidade, agora decadentes, e sofrem com o racismo e a exclusão de toda sorte. Kaurismäki ao dotar Idrissa de perfil positivo escapa à estigmatização do imigrante em geral.
Idrissa, acolhido na casa de Marx, se integra. E como no drama há sempre o antagonista, este surge na figura espectral do vizinho solerte, interpretado pelo ator fetiche da Nouvelle Vague Jean-Pierre Léaud (“Os Incompreendidos”, François Truffaut, “A Chinesa”, Jean-Luc Godard). Ele representa a classe média silenciosa, o fascista que se sente ameaçado pelo jovem imigrante. Ele, sim, irá desencadear a trama que levará ao desfecho. Marx terá, assim, dois fatores a despertá-lo para a ação: salvar Idrissa e ter equilíbrio para cuidar de Arletty, às voltas com o inesperado.
A terceira parte de “O Porto” tem o tom farsesco, de comédia de costumes, com as ações se acumulando, às vezes quase irrealistas. O que rompe com naturalismo da primeira parte. Os personagens que surgem beiram o caricato. São tão “decadentes” quanto o ex-escritor Marx. Little Bobby é um roqueiro em fim de carreira, cuja relação com a mulher é salva pela solidariedade a Idrissa e seu show beneficente é seu canto de cisne. O próprio policial Monet tem o comportamento solto de quem age por estratégia. Idrissa torna-se, assim, o fator de união.
Kaurismäki varia de tom e de gênero para tornar Idrissa o centro da ação. Os que estão à sua volta são tão deserdados quanto ele. Inclusive o engraxate vietnamita Chang (Quoc Dung Nguyen), imigrante ilegal. Nenhum deles sustenta a xenofobia e as políticas neoliberais de Sarkozy. Desta forma, Kaurismäki aponta para a solidariedade e a possibilidade de se ver o outro, seja lá de onde venha, como seu igual, não como ameaça. É o que importa.
“O Porto” (“Le Harve”). Drama. Finlândia, França, Alemanha. 2011. 93 minutos. Fotografia: Timo Salminen. Roteiro/direção: Aki Kaurismäki. Elenco: André Wilms, Kati Outinen, Jean-Pierre Darroussin, Blondi Miguel, Jean-Pierre Léaud, Pierre Étaix.
(*) Prêmio Fipresci, Federação Internacional dos Críticos de Cinema em Cannes, 2001.