O projeto totalitário de Villas Boas

O lançamento do livro do ex-comandante do Exército no ano que antecede a eleição presidencial representa um chamamento à unidade da direita em torno desse projeto e, consequentemente, da reeleição do capitão genocida.

Bolsonaro e Villas Boas guardam segredos entre si l Foto: Reprodução

O assunto da semana que findou foi a prisão do deputado Daniel Siqueira, determinada pelo ministro Alexandre de Moraes e confirmada por unanimidade pelo pleno do Supremo Tribunal Federal. O fato, em um contexto mais amplo, guarda grande simbolismo, pois responde de forma firme à impunidade daqueles que, desde os atos de 2013, clamam pela volta do autoritarismo, incitam ao golpismo e ao desrespeito à Constituição, instigam a violência e a intolerância e, acima de tudo, estimulam o desrespeito aos poderes da República.

Mais relevante ainda foi o fato de a Câmara dos Deputados ter mantido a prisão por esmagadora maioria de votos, 364 a 130, mostrando que, apesar de sua composição majoritariamente conservadora e fisiológica, o Legislativo é capaz de reagir ao fascismo.

No entanto, a atitude do deputado não teria tido tamanha repercussão e reação do Supremo e da Câmara, não estivesse ela relacionada a dois outros fatos, de maior gravidade, ocorridos na semana anterior: o recente lançamento do livro do jornalista Celso Castro e a reação do ministro Fachin

A publicação do livro de Celso Castro, intitulado “Villas Boas: Conversa com o Comandante”, gerou uma série de reações, em especial quanto à revelação nele contida, de que a mensagem intimidatória ao Supremo Tribunal Federal, publicada há três anos, quando do julgamento do Habeas Corpus do ex-presidente Lula, não foi uma inciativa pessoal. Na entrevista concedida ao jornalista da FGV, o general “revela” que o conteúdo foi discutido minuciosamente pelo seu staff e pelos integrantes do Alto-Comando residentes em Brasília, e só então veiculado.

Convenhamos, tal revelação não traz novidade alguma. Em uma estrutura regida pela hierarquia e rígida disciplina, quando um posto superior se manifesta, fala necessariamente em nome da corporação. Outro aspecto é que a manutenção da disciplina exigida em uma estrutura militar só se mantém se os comandantes construírem e preservarem um forte sentido de liderança sobre seus comandados, de forma que um experiente general como Villas Boas jamais tomaria tal atitude sem consultar seu Alto-Comando, pois uma atitude isolada, de tal porte, necessariamente colocaria em questão sua capacidade de liderar. O livro entrevista traz outras revelações mais importantes e menos óbvias que essa.

A mais importante delas, na minha opinião, é o processo de politização e instrumentalização do Exército que nas entrelinhas da entrevista, entende-se que vem de longe. O general afirma que ao assumir o Comando da Força, estabeleceu como objetivo romper com o patrulhamento que ocorria toda vez que um militar se pronunciava e que, para tanto, colocou como meta que o Exército voltasse a ser ouvido.  Para operacionalizar tal objetivo, o general Rêgo Barros, do Centro de Comunicação Social do Exército, planejou o uso das redes sociais, a serem orientadas por ideias-força atinentes a objetivos pretendidos ou às campanhas em curso. Diariamente, segundo Villas Boas, Rêgo Barros repassava os destaques do dia anterior e discutiam as atitudes a serem tomadas. Em síntese, o twitter intimidatório foi resultado de uma ação institucional, o que caracteriza a politização da Arma.

Diante da revelação sobre o twitter, embora com três anos de atraso, Fachin, que foi o relator do Habeas Corpus, reagiu, o que levou o deputado Daniel Silveira a sair em defesa do general.

O processo do tresloucado deputado seguirá em frente e muito provavelmente ele será condenado e cassado. No entanto, mesmo que pondo um certo freio na ala terraplanista do bolsonarismo, isso não enfrenta o projeto de poder que vem sendo construído nos quartéis desde o início da década passada.

No livro entrevista, Villas Boas responsabiliza a Comissão da Verdade, a qual qualifica de revanchista, pelo desencadeamento  de um “revanchismo ao contrário”. Para o bom entendedor, meia palavra basta. Deduz-se da fala do general, que os militares passaram a temer um aprofundamento da condenação pública do regime de 1964 e com isso serem forçados a admitir publicamente os crimes cometidos. Na verdade, ainda que mantendo silêncio, o que se revela é que esta geração do generalato – formada na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) na década de 70, quando a Academia era dirigida pela linha mais dura do regime – nunca abandonou as concepções que orientaram o regime de exceção. O desgaste do governo Dilma, a partir de 2013 com as manifestações que tomaram o país, foi a oportunidade para começarem a se reposicionar no sentido de retomar o poder. Não que a Comissão da Verdade não os incomodasse, mas tal incômodo serviu tão somente de justificativa para se reorganizarem.

Ainda que afirme que, independentemente do resultado do processo de impeachment, as Forças Armadas não se afastariam do papel que lhes determina a Constituição e não se envolveriam politicamente , declara que naquela altura já se havia estabelecido uma espécie de válvula de escape: as manifestações de rua, das quais o pessoal da reserva e uma parcela importante da família militar tomava parte. Convenhamos, tal confissão faz lembrar as greves de polícias militares onde a mulheres dos membros da corporação vão para a frente dos quarteis simulando que estão a impedi-los de sair para as operações e os policiais afirmam que não estão em greve mas sim impedidos, pelos familiares, de trabalhar.

Villas Boas revela ainda que, a pedido de Temer, ele, o vice-presidente e o então chefe do Estado-Maior, o general Sérgio Etchegoyen – colaborador direto de Villas Boas no comando do Exército e seu amigo de infância – tiveram um jantar em algum momento antes do impeachment de Dilma, quando Temer teria sondado qual seria a reação das Forças Armadas caso o desfecho fosse o afastamento. E o que se observou, logo após golpe, em 2016, foi que Etchegoyen veio a assumir o Gabinete de Segurança Institucional, recriado por Temer, e se mostrou uma das pessoas mais influentes do seu curto governo. Diante de tais fatos e da afirmação de participação dos oficiais da reserva e familiares dos oficiais da ativa nos movimentos pró-impeachment, é pouco crível que tenha ocorrido a neutralidade que Villas Boas afirma ter havido. E não deve ser mera “coincidência” o fato de ser Etchegoyen o revisor do livro de Celso Castro.

Mais à frente, Villas Boas admite que Bolsonaro teve, em especial no segundo turno, a “preferência” dos militares. Atribuiu tal posicionamento ao sentimento antipetista dominante no Exército e ao fato de ter sido Bolsonaro o candidato a ter dado ênfase ao combate do politicamente correto, do que, segundo o general, “a população estava cansada”. Afirma que as Forças Armadas se mantiveram neutras, mas admite que Bolsonaro despertou o entusiasmo entre os militares, por expressar posições de forma inédita, indo ao encontro da ansiedade de muitos. Não esclarece, porém, o que Bolsonaro quis dizer, logo após a eleição, com a afirmação pública dirigida ao general de que “o que conversamos ficará entre nós”.

Villas Boas tenta refutar a ideia de que Bolsonaro representa a volta dos militares ao poder e coloca como natural a participação de inúmeros oficiais da ativa e da reserva em cargos de governo, como se fossem nomeações desvinculadas umas das outras e representassem decisão pessoal de Bolsonaro. No entanto, é fundamental relembrarmos que Gustavo Bebianno, que foi ministro relâmpago da Secretaria-Geral da Presidência da República do governo Bolsonaro, no episódio de sua demissão, revelou que os militares palacianos se reuniam (e provavelmente ainda o façam), todas as quartas-feiras, à parte dos demais membros do governo. Na época, o próprio Villas Boas ocupava uma escrivaninha no GSI e certamente era presença obrigatória em tais encontros.

Outra questão importante revelada no livro recém lançado, é que Villas Boas e os militares não demonstram nenhum desconforto na convivência com a chamada ala ideológica do governo. Pelo contrário, o general demonstra grande afinamento com o pensamento geopolítico de Ernesto Araújo e rasga elogios a Ricardo Salles, afirmando que está fazendo um grande trabalho destruindo os órgãos de fiscalização ambiental. Também não lhes incomoda as insanidades do Presidente.

Resumindo, Villas Boas vê no governo Bolsonaro a ruptura com o que ele chama de imposição do politicamente correto pelos governos de esquerda, assim como, vê nele a possibilidade de restabelecimento da coesão nacional construída entre as décadas de 1930 e 1970, quebrada com a redemocratização nos anos 1980. Tal restabelecimento da coesão se daria através de um projeto para o país, capaz de fazer frente a uma nova guerra fria que, segundo ele, se avizinha com a ascensão da China. Ou seja, um projeto necessariamente de cunho autoritário, de submissão aos Estados Unidos, mas que Villas Boas vislumbra se legitimará nas urnas por meio da reeleição de Bolsonaro, obviamente sob a tutela dos militares.

Analisando-se o conteúdo, fica mais que evidente que o lançamento do livro no ano que antecede a eleição presidencial representa um chamamento à unidade da direita em torno desse projeto e, consequentemente, da reeleição do capitão genocida. Muito provavelmente Villas Boas pretende também atrair alguns iludidos com o suposto “patriotismo” dos militares, que acreditam que eles só entraram no golpe de 1964 na última hora e que sua participação no governo Bolsonaro ocorre apenas com o intuito de reduzir danos. Fica o alerta para as demais forças de que se não construirmos uma forte e ampla unidade sob a bandeira da democracia, os riscos de afirmação e legitimação do autoritarismo será praticamente inevitável.

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