O que Nelson Pereira dos Santos escreveu sobre Celso Marconi

Que seriam dos filmes, aqueles que ainda vivem dentro de nós, referências insubstituíveis de momentos gloriosos de nossas vidas, sem o registro da crítica da época, representada por cineastas / escritores do porte de Celso Marconi?

Publicado no Jornal do Commercio (Recife). Caderno C, 30 de Novembro de 2000 – Quinta-feira. Na foto acima, de Leopoldo Nunes, Celso Marconi à época do lançamento de seu livro.

O Cinema Novo e a críticas cinematográfica

O Cinema Novo não foi um movimento cultural isolado, nem um produto  do  privilegiado eixo Rio-São Paulo. Aconteceu no Brasil inteiro, mesmo nos estados onde era fraca a atividade cinematográfica, porque foi um movimento que revolucionou não somente a produção de filmes no Brasil, mas também a crítica e o pensamento ligados ao cinema.

Melhor dizendo, o cinema novo resultou do encontro de jovens realizadores com o moderno pensamento crítico do cinema, encontro esse que se deu algumas vezes na prática dos próprios realizadores, como foi o caso exemplar de Glauber Rocha.     

Outros cineastas talentosos continuaram sua obra no exercício da crítica, diária, permanente, no esforço de estabelecer a ligação do leitor, quase sempre um espectador do cinema convencional hollywoodiano, à nova linguagem que se inaugurava também no Brasil.

É o caso do colega Celso Marconi. Ao lado de sua câmara, a escritura; em ambas, comandando-as, a cabeça do filósofo indagador.

Os textos aqui presentes documentam o requintado sabor que ele sempre emprestava na apreciação de cada filme, em especial quando tratava-se de filme brasileiro.

A leitura deste livro equivale a uma viagem na memória, em busca dos filmes, brasileiros e do mundo inteiro, que fizeram a cabeça de muito jovem nos anos 60. Saudades do cinema…

Leia também: A crítica e o cinema brasileiro

Que seriam dos filmes, aqueles que ainda vivem dentro de nós, referências insubstituíveis de momentos gloriosos de nossas vidas, sem o registro da crítica da época, representada por cineastas / escritores do porte de Celso Marconi?

Nelson Pereira dos Santos  

Recife, 27 de julho de 2000

*Prefácio do livro Cinema Brasileiro (Volume I)      

Entrevista de Celso Marconi a seu biógrafo Luiz Joaquim 

Celso Marconi (julho.2021)

Celso Marconi: “É o artista que cria a arte cinematográfica, e não o enredo do filme”.

P – Como deve ser encarado o cinema?

R – Para mim o cinema deve ser encarado como uma obra de arte. Cada filme é uma obra de arte, não é apenas um elemento explícito de divertimento ou de comunicação. Cinema não é apenas comunicação. Meu pensamento, hoje, segue esse sentido. O cinema é uma peça fundamental porque a arte é fundamental dentro da estrutura da cultura.

P – Quais os fatos mais importantes ocorridos nesses últimos 20 anos?

R – O mais importante é essa divulgação mundial da tecnologia da comunicação. Acho que é a coisa mais importante que aconteceu. Isso tem dado chance a humanidade de se desenvolver num sentido mais propício para viver. Quer dizer, é muito bom, e têm sido essencial, essa tecnologia, para mudar as pessoas e para mudar o mundo, mudar a forma de comunicação, mudar a maneira como você se apresenta a um outro, como se comunica e como se convive com o outro. E, no caso do cinema, ela é arte mais comunicativa, é a mais ligada ao povo. Antes do cinema, as outras artes tinham dificuldade de se comunicarem com o grande público. Não existia essa coisa de ‘o grande público’. Existia uma público consumidor de arte, mas restrito. O cinema criou essa possibilidade do ‘grande público’ entrar no mundo da arte. Walter Benjamin [1892-1940] é um dos que criou teorias sobre cinema que o valorizou. Ele buscou mostrar que a arte perdeu sua aura de inacessível a partir de tecnologia, e o cinema não se prende a uma originalidade. Por exemplo, quando vejo Meu tio da América [de Alain Resnais, 1980] estou vendo o filme como foi concebido originalmente, mas eu como espectador também crio a minha originalidade para o filme a partir do que a arte cinematográfica possibilita.

P – Quais os elementos necessários para a realização de um bom filme?

R – Uma imagem. Mas o cinema também abarca o som. Agora, na realidade o cinema se desenvolve independente de sua história. É o artista que cria a arte cinematográfica, e não a história. O argumento não é fundamental, ainda que o argumento seja uma das partes que mais deixa o público ligado ao filme. Mas a forma como o filme se desenvolve, sendo essa forma determinada pelo artista, isso é que é o fundamental.

P – Acha que a transmissão de filmes por streaming signifique a morte do Cinema?

R – Eu acho que não. Eu acho que instrumental, essa tecnologia, ajuda. A arte cinematográfica é uma coisa independente. Vamos pensar na pintura. Quando surgiu a fotografia as pessoas falavam que a pintura morreria. Ela continua vivíssima hoje. Assim, a obra de arte cinematográfica, quando ela passa no streaming, ela permanece autentica, independente se é para um público restrito ou não. E isso não significa que ela irá ficar restrita àquele público. O streaming possibilita que, por exemplo, apenas um espectador veja um filme solitariamente, mas eu já vi filme sozinho numa sessão cabine para a imprensa, numa sala de cinema. Isso significava que aquela sessão não era cinema? Dizer que o cinema acabou porque está sendo exibido para uma pessoa está errado. E hoje, cada vez mais, qualquer filme tem a possibilidade de ser visto no mundo inteiro, em qualquer lugar onde podemos chegar com essa comunicação mundial.  

P – No momento, qual é o melhor cinema?

R – Não tenho capacidade de responder porque não acompanho lançamentos cinematográficos, mas o que a gente nota é que o cinema de Pernambuco é o melhor [risos, muito risos]. São os filmes próximos de mim, e são filmes que a gente vê que o assunto e a forma interessam. O cinema é uma arte muito ligado à sociedade. Cinema é a arte mais social, e é isso que dá a oportunidade, por exemplo, de um filme de Kleber [Mendonça Filho] ir para o mundo todo. Por que Cannes o convida para integrar o júri? Porque o seu cinema tem importância mundial. Você aqui faz o filme para o CINEMA e o filme atinge as pessoas no Japão, da mesma forma que o cara do Japão faz um filme e atinge as pessoas aqui independente do tema. O cinema hoje não tem mais grupos. Nos 1960s o cinema era muito ligado à escolas: o expressionismo alemão, o neorrealismo italiano, depois a Nouvelle vague. Essas escolas não existem mais. Cada um cineasta segue seu caminho. Há muita individualidade. Mesmo no cinema norte-americano conseguimos ver cineastas com produções diversificadas, exceto por aqueles realizadores estritamente industriais, né?

P – Que diz sobre o cinema americano e o europeu?

R – Nos anos 1960 acho que o Europeu era melhor, e era mesmo. O norte-americano é muito vinculado à ideia da indústria, e as outras cinematografias são menos subordinadas a isso. A construção artística parece ser mais livre. É como se as outras cinematografias fossem feitas por artesões, e as de Hollywood, por industriais. Se você gosta dessa arte é o cinema independente que vai te interessar. Mas não quer dizer que na indústria você não encontre filmes maravilhosos.

P – Sobre o cinema nacional acha que poderíamos atingir o nível técnico-artístico de outros países mais adiantados?

R – Nos anos 1960 havia uma dificuldade técnica para a produção nacional, a técnica era muita mais cara. Hoje acho que a tecnologia parece ser menos importante. Hoje acho que a tecnologia é mais possível de ser aproveitada por pessoas independentes. A tecnologia hoje é de boa qualidade e é acessível. Mas, claro que um filme que custa RS 200 milhões tem mais possibilidades que um filme que custa R$ 3 milhões.

P – Cite dez dos mais importantes filmes que já viu.

R – Rocco e seus irmãos;  Deus o e o diabo na terra do sol; Brinquedo proibido; Vidas secas;  Ladroes de bicicleta; Os brutos também amam; O último tango em Paris; Matar ou morrer; São Bernardo; Bye Bye Brasil.  

P – Valeria a pena criar um novo cineclube no Recife em 2021?

R – Não sei. Já existem cineclubes pela internet, não existe? Acho um cineclube no modelo antigo não valeria a pena. Hoje, eu acho que o caminho é, por exemplo, o que o Sesc tem feito, o ‘Cinema em Casa’. Pode-se criar debates, que é sempre algo interessante. Talvez um cineclube pudesse funcionar com a programação de um filme na internet, de modo que cada um visse o filme, em seu tempo, e se agendaria um debate, por grupos de debate, sobre determinados assuntos. Seria um cineclube, só que num formato atual.  

*Aos 92 anos, é o crítico de cinema mais longevo em atividade no mundo. Referência para os estudantes do Recife na ditadura e para o cinema Super-8

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