O rei Roberto e seus súditos

A coluna anterior caiu sobre a minha cabeça. O rei, que no começo da carreira mandava tudo para o inferno, me fez cair entre leitores que me mandaram para lugares de maior fogo. Os mais leves disseram: “Prezado escritor, do qual eu nunca ouvi falar: como você tem a ousadia de falar mal de uma pessoa que deu tantas alegrias ao povo brasileiro?”. Claro, se eu falasse bem, não importa o que falasse, estaria certo. Mas como não falei bem, entendam: dizer que Roberto Carlos é a melhor, ou a pior, a escolher, referência musical da ditadura, não é bem falar mal, é bem dizer de quem reduziu o mundo, em época de angústia e terror, a meu bem, meu bem, meu bem …. ao infinito. Numa civilização, numa terra que se fizesse digna de Noel Rosa, esse óbvio nem precisaria ser escrito.

Outro leitor, mais rápido nos socos, jogou um direto: “… ou será o cronista um jurássico bolchevista que pensa que ainda existe URSS, e que os milicos de 64 estão vivos e mandam no governo Dilma?”. São 4 perguntas e um só ponto de interrogação. Mas as gentilezas são bem mais de 4. Vejamos apenas uma: jurássico é um pouco forte, não? Com isso, o adorador do produto RC quer apenas dizer: a) socialista não gosta de mercadoria; b) socialista é um ser ultrapassado, velhíssimo, do tempo de 1917. Mas aqui não há espaço para essa discussão. Importa mais dizer (e este deve ser o objetivo do fã) que essa discussão sobre ditadura, sobre seus reflexos na arte, é uma coisa já morta. Em nome da inteligência dos que leem, passemos adiante.

Cheguemos à melhor parte, ao melhor dos torpedos. “São tantos os questionamentos, que só posso chegar à conclusão, meu amigo, que você nesta vida não deve ter sido bem amado. Senão, saberia o sabor de cantar algo tão lugar-comum, mas tão gostoso como: ‘como é grande o meu amor por você’ ”.

Entenderam? O nível é um pouco abaixo da inteligência das pedras. Tentemos, no entanto, dialogar com esse gênero de natureza física:

Meu semelhante, meu irmão: se Roberto Carlos cantasse o desamor, seria mais verdadeiro. Se não verdadeiro, porque para isso deveria ter talento, se não verdadeiro, pelo menos mais próximo de uma experiência universal. Se ele, num profundo e impossível delírio, se juntasse a Erasmo, a Wanderlea, a Jerry Adriani, a Martinha, a Ronnie Von, olhe só que time de arromba, e com eles formasse uma Banda dos Corações Solitários do Sargento Pimenta, ah, decididamente estaríamos imaginando a mais bufa das comédias já escritas. Porque veja, um Coração de Visita não é um Cartão de Visita. Num cartão a gente escreve: Roberto Carlos, o Rei. Num coração a gente grava:

“Nosso amor que eu não esqueço
e que teve o seu começo
numa festa de São João
morre hoje sem foguete
sem retrato e sem um bilhete
sem luar e sem violão.
Perto de você me calo
tudo penso e nada falo
tenho medo de chorar.
Nunca mais quero o seu beijo
pois meu último desejo
você não pode negar…”

Isso é Noel. Deveríamos nos referir a isso assim, para maior glória do seu criador: isto é Noel!, e ainda assim, não teríamos expressado o que recebemos, a pancada que sofremos, diante do seu sentimento e visão. Porque na arte há uma empatia, uma comunhão de almas, que os crentes às vezes tentam quando com fervor se recolhem em oração. É um diálogo entre nós e o melhor de nós, que antes da arte jazia adormecido. Não sei se me expresso bem. Digo: não vale um tostão furado a composição que cante para outros a sua última cópula. Sim, claro, a arte também canta o amor físico, a felicidade, se com isso ela expressar mais que uma exibição oca, tautológica, do gênero “estou feliz, porque estou, porque sou feliz, porque amo, eu amo, amo”. A felicidade é uma orquídea muito frágil, é uma flor de mandacaru que só dura uma noite. É preciso que se esteja muito embrutecido para sentir esse transitório com a duração de um para sempre.

Mas nem por isso devemos afundar na mesa do bar, empunhando um revólver contra a têmpora, a cantar um tango. Pois há um sabor bom no amargo, e os bebedores de café bem forte sabem o que eu digo. Baudelaire preferia absinto. Nós, para nos aguentarmos sorridentes, preferimos ler um e-mail, uma mensagem curta, de um grande fã de Roberto Carlos. O e-mail dizia, psicológico: “Cuidado! Inveja é uma doença crônica e incurável”.

São coisas assim que sustentam os dias do colunista.

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