“O Sabor da Melancia”: O lugar do sexo

Em seu filme, o diretor malaio Tsai Ming-Liang mostra que o sexo na tela pode ser mais produto que um ato de amor ou de prazer

No cinema atual, na ausência de perspectiva revolucionária, o sexo parece ser a última fronteira a ser ultrapassada. Nada é sugerido, deixando ao espectador a possibilidade de ele mesmo preencher com sua experiência o que não lhe é revelado. Recebe uma avalanche de cenas, em seqüências supostamente bem elaboradas, que procuram desvendar implicações e conseqüências de atos que terminam por entediar, ao invés de estimular a transgressão, a vontade de ir além do permitido. Não se sabe, muitas vezes, se este é realmente o tema do filme ou se uma das nuances do enredo traçado em intermináveis cenas de acrobatismo sexual. Esta é uma tendência da qual diretores mais ousados procuram escapar, com resultados desiguais. Um deles, o malaio radicado em Taiwan, Tsai Ming-Liang, tenta ultrapassar esta abordagem, em “O Sabor da Melancia”, mantendo os limites entre o erotismo e a pornografia.
                 


A matriz de seu filme é “Império dos Sentidos”, do japonês Nagisa Oshima. Produzido em 1976, ele conta a história verídica da paixão de Sada Abe por Kichizo. Sua relação com o amante, tendo como pano de fundo a guerra sino-japonesa, em 1936, acaba em tragédia. Oshima leva-a ao extremo, unindo erotismo, arte e pornografia. Foi um choque para a sociedade nipônica e mundial naqueles anos. Há entre eles, Sada e o amante, um vazio difícil de ser preenchido. Algo de doentio e transgressor, que encanta e atrai o público, pois foge a seu controle e a suas referências. O espectador não sabe lidar com os personagens e sua história, pois o cinema sempre demarcou campos, havendo o espaço do filme sensual, erótico até, com o filme nitidamente pornográfico. E Oshima os une em sua obra. Não há mais espaço demarcado, ele mostra que ambos podem ser fundidos num só filme, com igual resultado.


                 
“Império dos Sentidos” apontou caminhos em 70


                  
Oshima foge à tendência do cinema de arte ou mesmo comercial de simular as cenas de sexo, como se dissesse: é assim que se faz. E pronto. Com elipses e cortes, o espectador preenche, a seu modo e experiência, o que se passa entre o antes e o depois. Mas, ele, Oshima vai, aos poucos montando sua história, a paixão entre Sada e Kichizo, incluindo cenas de sexo total. Sem simulação ou subterfúgios. O cinema torna-se adulto, centrado em relações reais, não numa encenação. Abre, desta forma, campo para que obras posteriores possam levar adiante a relação aberta, para um público cujos filhos terão aulas de sexo na escola e poderão assistir a filmes em que as relações sexuais são verdadeiras. Há um clima, claro, condizente com a época, em que entram as liberdades civis, as lutas pela liberação da mulher e a emancipação das colônias da África e Ásia. E também um vazio a ser preenchido: o de que é preciso avançar ainda mais.
                 


Parte deste clima está presente em “O Sabor da Melancia”, embora o contexto, o país e os anos sejam outros. O cinema ainda não se libertou totalmente da simulação e precisa de artifícios para dizer ao público que há na sociedade, seja ela qual for, seres que praticam sexo real. Ming-Liang, para contextualizar seu filme, procura mostrar, primeiro, o lugar onde ele se passa. No caso, a cidade de Taipé, capital de Taiwan, que se encontra sob os efeitos de forte calor e a falta d´água leva a população a consumir melancia. Abre com um lento plano-seqüência, de câmera fixa, com a personagem avançando para a câmera. Depois a faz entrar direto no tema do filme: as relações sexuais simuladas, como se tratasse de uma produção pornô. Mas nada que transgrida, choque, pois logo se descobre que ali se quer tematizar e não provocar.


                   


Vazio de uma sociedade que luta para sobreviver


                  


Desde já, percebe-se que se trata de uma sociedade high-tech, premida pela necessidade de mostrar-se superior à China continental, potência emergente. E tenta, devido a isto, dar a seus habitantes um nível de vida compatível com o do Ocidente, principalmente dos EUA. Ali estão os supermercados, os shoppings-centers, os espigões e, também, o isolamento que estes impõem a seus moradores. Devido a isto, homens e mulheres habitam uma sociedade fria, sem nuances e conflitos explícitos. Estão afastados uns dos outros, como se cada um habitasse uma cidade diferente.
                  


É nesta estrutura que Ming-Liang põe seus personagens. Lee Kang-Sheng (Hsiao-Kang), jovem ator pornô, Chen Shiang-Chyi (Shiang-Chyi) garota solitária, que tentam se aproximar um do outro, mas não conseguem. Eles se movimentam por amplos espaços de concreto: corredores, viadutos, ruas e se escondem em sotãos e quartos mergulhados na penumbra. São mais zumbis que seres cheios de vida. E com a estética de Ming-Liang, esta visão se torna evidente. Ele, o ator-pornô, exerce uma atividade como qualquer outra no mundo capitalista, em que seu trabalho é produzir lucros para a produtora de filme de sexo explícito, que rende mais que o cinemão norte-americano. Ela, uma garota, sem aparente atividade, mais preocupada em achar uma chave, ou uma companhia, do que qualquer outra coisa aparentemente mais relevante. 


                 


Vidas sem perspectivas e sem prazer real


                 


Ambos parecem buscar algo para além do vazio de suas existências. Perambulam de um lado a outro, por amplos espaços, repousam em bancos de praças, sem rumo e saída. Esta derrisão representa, por outro lado, parte da parábola montada por Ming-Liang, centrada na melancia que, em dia de intenso calor supre as necessidades eróticas e de sede da população. Para a garota trata-se de uma fruta com poderes afrodisíacos; para o produtor do filme pornô de uma fruta com potente simbologia erótica, mas para os comerciantes da feira onde ela é vendida, tratar-se de uma rica fonte de lucros. Em suma, a melancia se transforma, ao longo do filme, num produto que, cada um a seu modo, usa para atender a finalidades que, afinal de contas, se traduzem na marca maior do consumismo taiwanês.
                  


O consumo da fruta em dia de calor intenso aumenta sua cotação, gerando discussões entre os comerciantes sobre sua venda internacional. Enquanto isto, a garota usa-a para aplacar seu desejo e a atriz e o ator pornô para reforçarem a carga erótica que tentam passar ao público. Nisso se constitui a transgressão de Ming-Liang: tomar emprestado da TV cenas que lembrem comerciais de produtos que as pessoas compram e consomem sem dar-se conta de sua potência erótica. A isto adiciona uma encenação de sexo explícito em que o explícito está, às vezes, na aparição de partes íntimas dos personagens. É então que surge a tendência de tomar o pornô como referência de transgressão, de avanço, de uma forma de arte que busca chocar pelo que mostra, sem enfrentar, de fato, o que pretende. Ou seja, de fazer um filme em que o enredo inclua sexo explícito. Estaria assim o cinema de arte adentrando o campo do cinema pornográfico, sem que o público perceba.


                   


Outros cineastas flertam com o pornô


                 


 Jane Campion, em “Carne Viva”, inclui seqüências de sexo explícito num drama policial. É algo nuançado, que mostra a personalidade do policial, que, depois, se tornará suspeito de vários crimes. Não há crítica, só o contexto. Em “Os Sonhadores”, Bernardo Bertolucci, sem chegar a tanto, fecha três jovens num apartamento parisiense para apontar a gênese das transformações comportamentais do revolucionário ano de 68. A transgressão emerge por inteiro, como parte de um movimento libertário, que incluía, claro, a liberdade sexual. O mesmo se dá com “Os Idiotas”, do dinamarquês Lars von Trier, que põe um grupo de jovens no campo para viver uma experiência impar nos anos 60. Eles se permitem de tudo, da discussão sobre a liberdade, atos cruéis, até o sexo grupal, sem meios tons. O sexo explícito em “Os Idiotas” serve a um propósito, não o de chocar o público.
                   


De qualquer forma, é o cinema de arte adentrando ao campo do cinema pornô, mesmo com forte conteúdo e discussões contextualizadas. Rompe com o que disse o cineasta e roteirista Jean- Claude Carriére, sobre a falsidade e a volubilidade das cenas de sexo no cinema (falava da insinuação, dos meios tons). Não correspondem, segundo ele, ao real. É então que se pode indagar se, nesta altura das relações capitalistas, escancarar as relações sexuais representa alguma transgressão? Primeiro devido ao comércio do sexo: revistas, internet, vídeos, DVDs, filmes, mostram  que a relação em si tornou-se produto ao ser gravada em celulóide, discos (DVDs), impresso em papel (via fotografia) e presente nas mais diversas formas de comerciais (TV, out-door, mídia impressa). E seu consumo alimenta uma das mais lucrativas indústrias do planeta. Então, admite-se que o sexo explícito no cinema de arte é, realmente, a última fronteira. A questão séria é se isto, depois de tudo que existe, se constitui numa transgressão.


                    


Pasolini usou pornô para denunciar


                   


Ao se falar nisto, está se lembrando de transgressões de verdade: Henry Miller, De Sade, Boccaccio, Chaucer. E sem esquecer o maior deles, o que exercitou de fato esta tendência no cinema: Pier Paolo Pasolini (Salo ou Os cento e vinte dias de Sodoma, Decameron, Contos de Canterbury,) nos anos 70. Só que estas transgressões iam contra a estrutura capitalista, colocava-a em cheque, desnudava seu conservadorismo, sua decadência, sua hipocrisia e cinismo. Contribuiu, e muito, para que se avançasse nas liberdades comportamentais, depois tolhidas, nos anos 80, pela aids, vindo a desembocar no fundamentalismo da Era Bush. Ming-Liang com “O Sabor da Melancia” percorre parte do caminho já aberto por eles. Só que neste princípio de século XXI, na encruzilhada imposta neoliberalismo e a globalização, sua abordagem lança, no máximo, um olhar depreciativo sobre a sociedade capitalista taiwanesa. Seus personagens quando reage o fazem cantando, numa forma de escapismo à vida sem sentido que levam.
                   


Numa brilhante seqüência, o ator pornô deita-se numa rede, no último andar do prédio onde mora, e ressurge como homem-peixe. De repente, põe-se a cantar. Nesta projeção, ele desvenda suas intenções, seus sonhos, a vida que pretende levar. É uma bela e romântica canção. Seqüências idênticas se repetem ao longo do filme,  projetando os sonhos dos personagens. Pela vida que levam não lhes sobra espaço para atingir seus objetivos. Então, lançam mão deste escapismo. Depois retornam ao vazio de suas vidas: quartos sem vida, solitários, sem chances de mudança. O único prazer que lhes é permitido é deleitar-se com a melancia e projetar nela seu desejo. Quando muito, revela Ming-Liang, tentam reagir como seres reais. Numa videoteca, cheia de filmes pornôs, a garota tomada pelo desejo, procura seduzir o ator pornô. Este, entediado com a pratica contínua de sexo, não se entrega a seu jogo com a paixão que ela espera.


 


                    


Sexo como produto de consumo


                    


A prática contínua, a exposição constante ao sexo, o faz perder a ligação com o gênero oposto. Ele não a deseja, não a ama, não se envolve com ela. Fica a seu lado, ajuda-a em alguns afazeres, nada que os torne um casal de namorados. A isto chegou. Perdeu a sensibilidade, o que faz é mecânico demais. Ele segue instruções precisas do diretor, do câmera, não exercita sua emoção, então a garota não entra em seu campo de desejo. Mesmo a parceira do filme torna-se alguém que atende a comandos, até que não mais reage. Seu corpo sem vida presta-se a necrofilia, e ele, o ator pornô, não se importa com o que lhe acontece. É nesta seqüência, de grande impacto, que Ming-Liang tira “O Sabor da Melancia” de um filme comum: a garota e o ator se relacionam e, se não há transgressão, pelo menos escapa ao simples pornô. Não é, de qualquer forma, um filme de fácil digestão.
                  


O cinema de Ming-Liang não se presta a deglutição (pipoca e Coca-Cola), exige paciência e reflexão. Se busca, a exemplo dos filmes citados, transgredir, o faz sem contundência, pois o contexto em que inseriu “O Sabor da Melancia” é por demais niilista. Pode, no máximo, chocar algumas mentes conservadoras. O cinema do Terceiro Milênio ainda está preso a liames do século 20. São raros os filmes que apontam caminhos e mostram que a sociedade atual – neoliberal e globalizante – cerceia a tentativa de se romper com a mercantilização da arte que, para mostrar-se avançada, precisa de usar de artifícios que o cinema pornô faz melhor. Ali não há simulação – só o real. É um produto, para consumo, não se pretende obra de arte. E, o cinema de arte ao reproduzir sua “estética” contribui para sua aceitação. O que, de qualquer forma, pode não ser tão ruim, dado ao fundamentalismo reinante da Era Bush.


 


O Sabor da Melancia (Tian bian yi duo jun). Produção: França/Taiwuan. 2005.112 minutos. Fotografia: Liao Pen-Jung. Roteiro/Direção: Tsai Ming-Liang. Elenco: Hsiao-Kang, Shiang-Chyi, Lu Yi-Ching.

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