“O Silêncio de Lorna”: O Estima do Imigrante

Os irmãos Dardenne tentam analisar o processo de imigração em seu país, a Bélgica, e terminam por estigmatizar os imigrantes do ex-Bloco Socialista do Leste Europeu, como integrantes do crime organizado.

Os badalados irmãos Dardenne (Jean-Pierre e Luc) poderiam ter ficado à margem das discussões sobre as conseqüências da derrocada do ex-Bloco Socialista do Leste Europeu. Continuaria a criar filmes que discutem as contradições sociais e suas implicações nas vidas dos cidadãos comuns. No entanto, decidiram produzir e dirigir, como sempre, “O Silêncio de Lorna”, prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Cannes de 2008. E com ele ingressam no grupo dos diretores que, na suposição de discutir os problemas gerados pela imigração dos cidadãos daquele Bloco, acabam por estigmatizá-los. Nele, eles mostram como o crime organizado age na Bélgica, arrumando “casamentos” para que seus “clientes” conquistem a cidadania belga. Cada um deles não fica por menos de cinco mil euros. E para isto precisam de cobaia; alguém que se submeta a seu esquema e, através dele, alcance também o que pretende. No caso, montar um negócio ou simplesmente poder trabalhar legalmente no país.


 


 


Um esquema por demais batido, bem o sabem os que já tentaram migrar para a Europa e Estados Unidos. Mas é deste tema que os Dardenne tratam em “O Silêncio de Lorna”. Dele participa a jovem albanesa Lorna (Arta Dobroshi), como principal cobaia para a continuidade dos golpes da quadrilha na Bélgica. Ela o faz se “casando” com o viciado Claudy Moreau, desencadeando, a partir daí, uma série de entrechos que a mostram envolvida cada vez mais com Fábio (Fabrízio Rongione), seu contado para o sucesso do esquema de casamentos. Seu interesse nesse esquema é tornar-se independente, inclusive obtendo a cidadania belga. Existem, como se vê, pontas bem amarradas, não no roteiro do filme propriamente dito, mas nos anseios dos personagens, assim como na vida real. Em um caso ou outro, entrar nele custa caro; muitas vezes a liberdade temporária ou definitiva.


 


 


Diretores tentam mesclar documentário e denúncia


 


 


Com um tema destes, sob a direção de quem realmente saiba equilibrar ação e reflexão, “O Silêncio de Lorna” poderia render um bom filme de ação. Desses que se valem das contradições dos personagens e das situações em si para prender a atenção do espectador e levá-lo a torcer pela heroína/herói. Ficcionam a realidade e tratam tudo como fantasia, o que não é, de fato, uma exigência ou um padrão deste gênero de filme. Mas o que predomina sempre é a ação ao invés da reflexão, com a conseqüente manipulação das emoções do espectador. Os Dardenne, no entanto, procuram o tempo todo mesclar documentário, ação e denúncia. Cada um deles conseguido pela metade. Dão ao filme um andamento lento, de conflito entre o marido arrumado, Claudy (Jérémie Rénier), belga, jovem e viciado, e as articulações de Lorna com Fábio para tirá-lo do caminho, pois se trata de um negócio que rende milhares de euros e não uma ação entre cidadãos belga e albanês. A câmera dos Dardennes os pega sempre em grande plano, em plano americano, jamais se aproxima deles para não permitir empatia entre eles e o espectador. Há sempre mal estar entre eles, com Claudy mostrado como alguém prestes a desabar. Pena que isto é feito com uma frieza e falta de explosão, que tira mesmo qualquer envolvimento com o espectador.


 


 


 


Caso seja realmente essa a intenção deles, Dardenne, são traídos pelos insistentes clamores de perdão e ajuda de Claudy. Feito pelo bom ator Renier, ele acaba por ser um personagem interessante, vítima de uma situação da qual precisa sair. Então, Lorna mostra seu lado humano, solidário; embora advertida por Fábio de que o esquema não inclui sentimentos. Isto é feito de forma a permitir o espectador sentir o que se passa; quem é Lorna e o que esperar dela? Se nas primeiras seqüências ela é alguém do esquema, logo se mostrará distante dele, tendo objetivos próprios, dos quais participa o noivo Sokol (Alban Ukay). Entra, a partir daí outro dado, o da ação. Ou como Lorna alcançará seus objetivos, livrando-se de Claudy. Previsível, porquanto o andamento continue lento, embora outro importante dado seja acrescentado à história. Prevalece, então, a tendência dos Dardenne de reforçar a denúncia sobre a ação da Máfia na Bélgica, agindo, no caso, na armação de casamentos. Nada demais, se o espectador se contentar em ver “O Silêncio de Lorna” apenas sob este aspecto.


 


 


 


Filme “Fantasmas” trata imigrante de outra forma


 


 


 


E, uma vez mais, nenhum fato novo. O espectador já viu filmes de ação que projetam melhor a ação das máfias na Europa e nos Estados Unidos. Os Dardenne, portanto, não inovam em nada, se estivessem tratando apenas desta questão. Ocorre que, ao centrar o filme na ação da Máfia, o fazem em personagens que refletem a “diáspora” dos cidadãos do ex-Bloco.  Eles se transformam em mão-de-obra barata, desqualificada (nem todos; a maioria tem boa formação), submetida a jornadas brutais de trabalho, baixos salários e condições de vida desumanas. E, além disto, lhes são negados o estatuto de cidadão de primeira categoria, com direito a registro definitivo. Não só a eles, também os que emigram da América Latina, África e, até, da China, passam pelo mesmo processo. O diretor inglês Nick Broomfield, com outra abordagem, mas tendo-os como tema, faz uma denúncia contundente do tratamento que um grupo de chineses recebe na Inglaterra.


 


 


Baseado em fato real, “Fantasmas” (“Ghosts”), não o estigmatiza, nem o coloca como ameaça. Pelo contrário, mostra-os como vítimas de seus sonhos, das armadilhas montadas pela propaganda de bem-estar do Primeiro Mundo e dos que os aprisionam, com eternas dívidas de viagem, hospedagem, refeições e documentos. Não são diferentes, portanto, de Lorna, ansiosa por viver em um país que lhe dê a chance de concretizar seus sonhos. E, os Dardenne ao tratá-la como alguém vinda de um país da periferia da Comunidade Européia (CE), ainda sem status de membro, põe o espectador a vê-la como ameaça. Esta a armadilha desse tipo de filme. Se o roteirista/diretor, caso dos Dadenne, não se precavenha cai nesta vala comum da denúncia enviezada. Ainda que pretenda denunciar a Máfia, envolve o imigrante ilegal, vítima de perseguição, violência e racismo. Justamente o centro das restrições nas 27 nações que formam a CE, alicerçadas em legislação anti-imigrante, principalmente Itália, França, Inglaterra, Espanha e Alemanha, países onde a hostilidade é mais evidente.


 


 


Estes são, para lembrar, responsáveis pelos maiores ondas de emigração, como também pela colonização da África, América Latina e Ásia, iniciada nos século 16, cujos reflexos são agora sentidos, de forma negativa. Exploraram a exaustão das matérias-primas à mão-de-obra, redefiniram fronteiras, fragilizando nações inteiras, abrindo espaço para os conflitos atuais, principalmente na África, e agora os relegam à miséria, ataques piratas e busca desesperada de sobrevivência, ainda que às custas de emigrar para as nações colonizadoras sob risco de humilhação, deportação e morte. Portugal (Séculos 16-19) Bélgica (Séculos 19-20), por exemplo, colonizaram o Zaire, ex-Congo Belga, atual Congo, para ficar em apenas um detalhe sobre a responsabilidade desses países e dos citados acima no efeito bumerangue da atual onda de emigração para a CE. Então, passado meio século as conseqüências da colonização agora se fazem sentir com maior intensidade. E a estigmatização do imigrante, feita através do cinema, reforça a onda de exclusão, mesmo que os Dardenne se refiram ao imigrante vindo dos Bálcãs, no caso da Albânia, ou da Itália e da Rússia.


 


 


Lorna tenta conquistar direito de ser humana


 


 


Ele, o imigrante, passa não só a ser visto como integrante do crime organizado, como também uma ameaça ao emprego dos cidadãos dos países onde procuram abrigo. Lorna fica está em ambos os casos, pois, trabalha numa lavanderia e integra a quadrilha dos falsos casamentos. Trata-se de fachada para manter o esquema, enquanto não economiza dinheiro para escapar de Fábio, casar-se com Sokol e montar seu negócio. Porém, a exemplo dos antigos filmes de gangsters, um detalhe importante a faz pôr tudo a perder. “O Silêncio de Lorna” envereda por outro caminho, o da possibilidade de ser ela mesma, ser mulher, se relacionar amorosamente com quem deveria ser tão só uma vítima. Este detalhe dá outro sentido ao filme. Os Dardenne deixam de lado a temática do crime organizado e entram na da relação vítima/algoz. E daí enveredam para a fantasia, pondo em cena o tema da maternidade.


 


 


“O Silêncio de Lorna” ganha outra dimensão. Lorna, que feita por uma atriz com mais recursos interpretativos teria ressaltadas as contradições e as nuanças do personagem, passa a tender entre continuar a pertencer ao esquema ou dar vazão à sua natureza de mulher. É como se os Dardenne dissessem que ela, mesmo sendo capaz de cometer crimes, tem seu lado humano. Eles deixam o realismo de lado e a fazem cair no delírio. É como se ela fosse capaz de matar e ao mesmo tempo dar a vida. As seqüências em que ela se deixa levar pela esta tendência, são as mais ricas do filme. Deixa de lado o reacionarismo dos Dardenne e percorre o curto caminho da racionalidade. Mais poderia ser dito a respeito deste entrecho, mas o espectador terá a oportunidade de analisá-lo, pois é o único momento em que os diretores propuseram algo diferente em termos de narrativa. Ainda mais pelo desfecho que o convida a analisar o que pretende Lorna, realmente. Não é, de qualquer forma, a danação de pertencer ao esquema, alternativas outras existem. Nem “O Silêncio de Lorna” é uma obra que possa ficar como uma das melhores dos Dardenne, ainda mais com linguagem conservadora, câmera excessivamente parada e andamento lento da narrativa.


 


 



“O SiLêncio de Lorna” (“Lê Silence de Lorna”). Bélgica/Inglaterra. 2008. 105 minutos. Direção/roteiro: Jean-Pierre/Luc Dardenne. Elenco: Arta Dobroshi, Jérémie Rénier, Fabrizio Rongione, Alban Ukaj.

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