“Ódiqûe”: Pegadinha sem graça

Grupo de jovens classe média que se envolve com o crime é o tema do filme do diretor carioca Felipe Joffily

Muitas vezes se pergunta, como uma forma de preconceito, porque os jovens classe média se enveredam para o crime, como se os filhos de trabalhadores, por sua baixa condição social, estivessem condenados à marginalidade. Muitas teorias e teses depois; chega-se à conclusão de que os motivos são banais, trata-se de uma brincadeira da juventude, em sua fase de transição para a maturidade.  E que, passado esse período, eles voltarão ao eixo normal e seguirão rumo à vida cheia de responsabilidade. Na verdade, a considerar esta análise, suas ações não envolvem danos e as conseqüências não são relevantes. Na maturidade, elas, as ações, serão lembradas apenas como um rito de passagem. Aquele instante em que se adquire experiência suficiente para chegar à outra fase da vida, que não terá mais atos iguais aos cometidos no passado, pois já se sabe quais serão os resultados.



                


No cinema, estas visões da transição ou do comportamento da juventude assumem as mais diferentes formas. Muitas vezes, quando se trata dos filhos dos trabalhadores sua condição é mostrada de forma determinista. Eles não têm outro caminho a não ser o do crime, por mais que existam no mesmo filme, personagens que trilhem outro caminho. O caso mais recente, em se tratando da cinematografia nacional, é o de “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles. Neste os garotos cumprem um ritual que os levam, desde cedo, ao tráfico. E a rua é a escola, onde aprendem como chegar ao topo: o controle da venda do pó e do fumo. O desfecho dessa “sina” será a morte, em plena disputa pelo controle “da boca”, ou seja, da área de distribuição e controle da droga. Nenhuma áurea de romantismo e da condição humana em sua plenitude permeia suas vidas enquanto moradores dos aglomerados urbanos.


               


Desculpa para satisfazer as carências do trio


                


Trata-se, na verdade, da atenuação dos conflitos sociais, da luta de classe, no cinema, pois vende a imagem determinista da ausência de saída: estão condenados ao tráfico, e pronto. Outra, no entanto, tem sido a forma como são tratados os jovens da classe média. Há muito romantismo, drama, reviravoltas, ao estilo hollywoodiano. A matriz desta visão está no belo filme do americano Robert Mulligan, “Era Uma Vez um Verão”, que mostra a paixão do garoto Gary Grimes por Jennifer O´Neal, cujo marido havia partido para o campo de batalha, durante a Segunda Guerra Mundial. É tudo muito clean, sem nuances policialesca. Ao final, resta a dor, o senso de fracasso que permite o salto adiante. Na mesma trilha, idêntico período, o inglês John Boorman tratou dessa transição, em “Esperança e Glória”. Há uma infindável lista de filmes que têm o rito de passagem como tema, ainda que as nuances sejam adversas.
                 



O que importa aqui é que existem desculpas para o que acontece com os personagens classe média, em sua maioria. Quem assistiu a “Eu Me Lembro”, do brasileiro Edgard Navarro, deve se lembrar que o tratamento dado à história de Guiga remete claramente aos temas acima citados. Ressalta-se sempre o lado sexual, machista dos personagens. E, no final, justifica-se a fileira de ações que contribuíram para a formação do personagem, através de seu comportamento classe média. Seguindo a trilha destes filmes, “Ódiqûe”, do carioca Felipe Joffily, mergulha na vida de um grupo de jovens classe média, que perambulam pela cidade do Rio de Janeiro sem rumo, até encontrar uma forma de ganhar dinheiro para uma viagem ao Arraial D´Ajuda, em Salvador, onde passarão o carnaval. Com a diferença de que não os emoldura numa polidez banal, mas os desculpa pela forma como procuram satisfazer suas carências. Usa para isto a linguagem do cotidiano, cheia de neologismos, gírias, trejeitos, gestos, que se completam, permitindo o entendimento entre eles e dificultando o daqueles que não vivem em seu mundo.


                    



Palavrões e gírias são símbolos dos personagens


                   



Fala-se muito “Ódiqûe”, e a muitos decibéis, a exemplo dos filmes de Tarantino (“Pulp Fiction”, “Cães de Aluguel”), mesmo em espaços abertos. Talvez influenciados pelas músicas ouvidas sempre nas alturas em suas residências ou nas casas de shows onde são obrigados a gritar para serem ouvidos. A conversa entre Monet (Alexandre Moretzsohn) e Tito (Cauã Raymond) é travada neste clima. Há palavrões, frases entrecortadas, apontar de dedos, agressões explícitas, respondidas em idêntico tom. Quando Duda (Dudu Azevedo) entra em cena, no apartamento de Monet, entrecruzam-se situações que reforçam tudo isto. Seu universo não vai além das frustrações, da falta de dinheiro, da curta ambição e dos amores platônicos pela mesma garota. As mulheres quando surgem são em posições sexuais, objetos, corpos, para satisfazer apetites mais imaginados do que vividos. E, para completar o quadro, uma vez que a violência faz parte de seu cotidiano de forma  inevitável, ambos se deliciam com a apresentação de uma arma, como se fosse um elemento fálico.
                    



Monet, Tito e Duda são jovens classe média, numa sociedade que antes lhes permitia um futuro menos árduo, porém os faz viver, a exemplo dos filhos dos trabalhadores, em ambientes onde a presença da droga, do traficante, é constante. E eles mesmos os procuram. Vivem intrinsecamente juntos – eles, os traficantes e as drogas. Numa caminhada pelo bairro, Tito percorre a “boca do fumo” e se vê enganado por um deles. Noutra ocasião quando está com Monet discute e agride outro. Está sempre com os nervos à flor da pele. Vive em tensão permanente. Não só ele, como Duda e Monet, todos esquentados, impacientes e de visão que não vai adiante do quarteirão. O único que tem ocupação é Monet, que pensa sempre em usar o que ganha para curtir o próximo carnaval. Duda, umbilicalmente ligado à mãe, presta-lhe contas de seus passos, enquanto despeja uma saraivada de diatribes em cima do português, dono do bar, vizinho a seu apartamento.


                  



 Tito, personagem de Cauã Reymond, é o típico racista


                   


É Tito, porém, que sintetiza a imagem do jovem classe média, sem referências, sem família à vista e sem ligações com o trabalho. Está solto no mundo. Sua linguagem virulenta agride a todos e a tudo em sua volta. Em duas seqüências põe a nu sua capacidade de elevar o mal a um nível assustador. Ao estacionar o carro em que estavam ele, Duda e Monet, diante de uma mansão, são abordados por um garoto negro, fanhoso; os outros se distanciam e ele agride o flanelinha que queria limpar e “tomar conta do veículo”. O racismo brota de suas palavras, de seus gestos, a ponto de o garoto chorar, apavorado. Embora não se possa dizer que o roteirista Gustavo Moretzsohn tivesse a intenção de denunciar o racismo com esta cena, ela é uma repetição do comportamento de Tito com o traficante com o qual havia discutido e a quem havia agredido antes. E serve de qualquer modo para deixar latente o racismo que predomina entre as classes e segmentos sociais no Brasil.
                    



O filme, de qualquer forma, não consegue escapar ao esquematismo reinante ao matizar todos os traficantes como negros. É como se no tráfico houvesse predominância de afro-descendentes, quando, na verdade, eles são apenas uma ponta do gigantesco iceberg que predomina no mercado da droga. Há, assim, inúmeros buracos no roteiro de “Ódiqûe”, como caracterização de situações que envolvem os jovens classe média. Como ocorre, na maioria das vezes, o que se pretende ao escrever uma história é dotá-la de elementos suficientes para atrair e prender a atenção do espectador, sem se considerar as caracterizações de classe que terminam por aflorar depois de o filme estar pronto e exibido nas telas de cinema. É isto que conta quando ele é analisado e não a pretensa intenção do roteirista e do diretor de não contextualizá-lo. “Ódiqûe” trata da relação entre três jovens classe média cuja perspectiva de futuro vai até o carnaval em Salvador. Até que isto aconteça, eles perambulam por bares, salas de apartamentos e ruas. Entre uma andança e outra percebem que estão sem dinheiro para atingir seu objetivo.


                     



Crime de jovens classe média surge como desculpa


                     


Neste ponto, “Ódiqûe” escapa ao padrão do filme que tem o rito de passagem como centro. Envereda para o mundo do crime. O trio de amigos arma uma teia que envolve seqüestro e assassinato. Usa um amigo, o burguês Paulinho (Leonardo Carvalho) como aliado. A partir daí, tudo que estava latente, explode, cada um deles, mostra a fera que existe dentro de si. Equipara-se, deste modo, aos jovens proletários impulsionados ao crime. São violentos, implacáveis, dispostos a tudo para não deixar a oportunidade escapulir entre os dedos. Com a diferença de que, pela visão do diretor Joffily e do roteirista Moretzsohn, eles armam o golpe quase como uma brincadeira. Estão apenas em busca de aventura. Quando, enfim, retornarem ao Rio de Janeiro continuarão a ser jovens classe média. São, no entanto, tão criminosos quanto os outros, pois são graves as conseqüências de seu feito.Muitas desculpas serão encontradas para suas más ações. E, como no caso dos que puseram fogo no índio em Brasília, deixados de lado, “esquecidos”, por serem “gente de bem”.
                   



 “Ódiqûe”, com sua fotografia dura, montagem com estética de vídeoclipe, história pontilhada pelo tempo (marcação do horário de cada ação), mostra-se conservador ao escolher planos estáticos para deixar aflorar o discurso dos personagens. A câmera fica parada, sem interferir, por longos minutos. O que vale nestes momentos é a ação centrada no quadro. No entanto, cansa, reforça a falta de criatividade. Muito do que Tito, Duda e Monet dizem não se apreende, menos pela incompreensão do que eles falam com sua linguagem cheia de metáforas, de gírias e de neologismos, mais por deficiência do som, encoberto pelas batidas de hip-hop. Em “Na Cama”, Matías Bize, mostrou como se fotografa, se monta, torna ágil uma história passada em reduzido cenário. Não é apenas o corte que evita a lentidão, o enquadramento ajuda, e muito. Mudanças de ângulos de câmera, sem cair no hollywoodiano campo e contra-campo, e melhor enquadramento tornaria “Ódiqûe”, condizente com a estética jovem que Joffily pretendeu imprimir a seu filme.


                    



Linguagem faz referência a filmes de Tarantino


                     



Da maneira como está, “Ódiqûe” não se completa. Seu roteiro, criativo e surpreendente, embora com os senões apontados, carecia de uma direção, uma abordagem e uma montagem condizente com sua proposta. Os lampejos a Tarantino reforçam esta necessidade. Os comentários de Duda, de que o ratinho Mickey Mouse precisa ser exterminado porque ensina às crianças que se vai longe passando a perna nos outros, são releituras dos diálogos dos personagens de “Cães de Aluguel” e de “Pulp Fiction”. No entanto, é pouco para referenciar o personagem Duda, que, a exemplo de Tito e Monet, não tem ética alguma. Desse ponto de vista eles são criações típicas da etapa histórica em que vivem – os fins justificam os meios, ainda que faça sofrer os próprios amigos. A questão é o resultado da trama armada pelo trio: é puro hedonismo, busca do prazer pelo prazer, reforçado pela certeza de voltarem para casa e continuarem impunes. Fossem eles filhos de trabalhadores haveria idêntico determinismo: os primeiros estão determinados a ter “rito de passagem”, enquanto os últimos a serem sentenciados à execução sumária. Reforçar esta idéia e, no mínimo, aceitar as imposições da classe dominante.


 


“Ódiqûe”. Drama. Brasil, 2004, 90 minutos. Direção: Felipe Joffily. Elenco: Alexandre Moretzhon, Duda Azevedo, Cauã Reymond, Leonardo Carvalho.


(8) Prêmios: Oficial do Júri e Melhor Direção do Festival Internacional de Cinema Independente de Nova York.

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