Opiniões sobre Cuba

Há muito tempo sou cobrado a emitir minhas opiniões pessoais sobre o regime cubano. Entendo tal cobrança, afinal, quem se propõe a compreender o processo chinês deveria minimamente emitir algo sobre esta experiência próxima da gente. A oportunidade surgiu

Não somente por isso: ando percebendo que o pensamento único, o senso comum imposto pelo imperialismo acerca de Cuba – via revista Veja, Folha, Estadão, O Globo e afins – anda invadindo a subjetividade até de gente tida de esquerda. Uma postura de classe deve se impor ante opiniões a-históricas, superficiais e capitulacionistas.


 


 


Com relação ao pessoal “do outro lado” não cabem muitos comentários. Ganham muito bem para distribuir a cota diária de “besteiróis”. Um verdadeiro conta-gotas de entorpecentes sobre a subjetividade de nossa classe média, sobretudo a paulista. Retornando, para os nossos padrões sim, eles ganham muito bem, mas não para a capacidade financeira do imperialismo. O que recebem não passa de “grãos de areia num deserto formado por dólares”.


 


 



A análise e emissão de opiniões sobre Cuba


 


Critérios


 


 


A deserção de atletas, assim como a rendição de militantes de esquerda a fotografias da realidade cubana, é expressão do aumento da pressão norte-americana. Esta conjuntura de capitulação tem correspondência histórica com o século 19. Naquele momento, proliferaram-se – no âmbito da esquerda – três visões de mundo: uma pela direita professada por Lassale e superada no final do citado século por Bernstein; a centrista defendida pelo próprio Marx (com correspondência histórica na linha leninista); e pela esquerda Blanqui cumpriu o papel reservado no século 20 a Leon Trotsky.


 


 


A visão bernsteiniana (pela direita) ganhou pulso com o fortalecimento do Estado nacional alemão e seus instrumentos de persuasão sobre a classe operária, notadamente seu nascente e corrompedor capitalismo financeiro. Aí está a similaridade histórica entre o revisionismo histórico alemão e entre os – também revisionistas – “iluminados de esquerda” que gostam de dar conselhos ao povo cubano: sem saber estão cada vez mais pressionados pelo capital financeiro norte-americano.


 


 


Sob o aspecto exposto acima (com imperialismo e imprensa anexa à parte), não é tolerável a emissão de determinadas “informações” acerca da existência de fome e falta de higiene em Cuba, prestadas por pessoas do “nosso lado”. Daí a acreditar que seria preferível a restauração capitalista ante a realidade do “socialismo realmente existente” é um apenas um pulo. Um pulo para o lado de lá. O final deste tipo de conversa alguns já sabem: a não crença na possibilidade socialista, por motivos de aparência (apelos de ordem ecológica e em alguns casos até astrológicos) que esconde a verdadeira essência – desta opinião – relacionada à falta de instrumental teórico sério e visão da história como um ciclo processual (1). Expressão da confusão entre discurso de agitação e uma elaboração teórica de fundo. 


 



Agora quais os critérios utilizados para tais absurdas opiniões?


 


 


Os mesmos utilizados pela revista Veja e outras expressões pró-imperialistas. São pressupostos a estas opiniões em nosso meio: a a-historicidade alimentada por uma falta de conhecimento da formação social cubana, mais o desconhecimento mínimo de como funciona o processo de acumulação tanto no capitalismo, quanto no socialismo. Outros desconhecimentos: o da relação entre recursos naturais e desenvolvimento econômico e a da relação entre a viabilidade do socialismo e a constelação de fatores ligados à extensão territorial (Lênin).


 


 


Resumindo, pela falta de radicalidade (a raiz do homem é o próprio homem) e visão de conjunto. Instrumentos imprescindíveis a uma análise aceitável aos nossos padrões.


 



Revolução e a correta opção feita


 


A revolução cubana de 1959 é extensão da resistência iniciada com a primeira guerra – de 10 anos – pela independência iniciada em 1868, a segunda (guerra) iniciada em 1895 marcada pela expulsão dos espanhóis de seu território em 1899 e o início – em 1903 – das constantes ocupações norte-americanas que vão até 1933. Constantes golpes e contragolpes políticos entre elementos de sua classe dominante culminam na volta, em 1952, de Fulgêncio Baptista ao poder que já havia lhe pertencido no período entre 1933 e 1944.


 


Os investimentos norte-americanos chegam à ilha nos setores açucareiro, de mineração, no turismo e no jogo. Pela grande freqüência de marines norte-americanos, a Cuba pré-revolucionária foi apelidada de “prostíbulo dos Estados Unidos”. Entre 1953 e 1959 a batalha final que polarizou a sociedade cubana foi vencida pelas tropas lideradas por Fidel Castro, Camilo Cienfuegos e Ernesto “Che” Guevara.


 


 


Fiel às heranças de uma formação social espanhola, Fidel Castro teve de fazer opções em matéria de política, não empurrou a situação “com a barriga” típica dos processos lentos, graduais e seguros da América Portuguesa. Desta forma, mais de 70% das terras cultivadas no país, que estava então sob controle de empresas estrangeiras, sobretudo norte-americanas, foram confiscadas e distribuídas entre camponeses. Tais opções transformaram-se em condição objetiva tanto para a tentativa contra-revolucionária de desembarque na Baía dos Porcos quanto à crise dos mísseis em 1962.


 


 


Neste caso, ao declarar-se como um Estado marxista-leninista em 1962, para Cuba não havia outra saída: teria de se transformar em satélite soviético. Esta é uma polêmica que sob meu ponto de vista não leva em consideração alguns elementos básicos, de forma que sobram espaços para análises “guevaristas” de uma possível opção pela indústria em contraponto à dependência soviética. Entre tais elementos básicos posso citar: 1) a proximidade geográfica de Cuba para com os EUA; 2) a única experiência de tipo socialista no hemisfério ocidental; 3) a total incapacidade financeira do país em dar início a um processo de tipo substitutivo de importações ocorrido em países como o Brasil e o México e 4) O socialismo, em Lênin, restrito a somente um país só poderia prosperar sob uma imensa base geográfica e conseqüentemente com uma ampla gama de recursos naturais e isto não ocorre em Cuba.


 


 


Desta forma restava a Cuba adequar-se a um lugar na divisão social do trabalho no âmbito do Conselho Econômico de Assistência Mútua (COMECOM). Era sedutora a proposta de vender açúcar ao mundo socialista com preços praticados acima do mercado mundial, e em troca receber petróleo a preços subsidiados da ex-URSS, cereais da Bulgária, algum maquinário agrícola tanto da ex-URSS, quanto da Tchecoslováquia e treinamento militar a seus oficiais por todo o leste Europeu. Isso sem falar dos acordos assinados entre Kennedy e Kruschev garantindo em troca da retirada dos mísseis do território cubano, a integridade territorial de Cuba.


 



O retrato de Sócrates e a opção dos “iluminados”


 


 


A ligação umbilical de Cuba para com a URSS (juntamente com a bravura de seu povo) – com toda a contradição inerente ao processo – transformou qualitativamente o país em todos os sentidos. Não vou escrever os argumentos de sempre e nem apelar às estatísticas sobre saúde, educação etc. O critério da análise e os comentários, por mais reservados que se façam, deve ser puramente político e pautado por uma visão de processo histórico. Assim, não é difícil perceber que o povo cubano alcançou dignidade, amor próprio e nenhum complexo de inferioridade ante outro povo ou nação. Nem mesmo com relação ao povo soviético.


 


Os desafios conseqüentes à correta opção cubana tomada na década de 1960 seriam postos à prova somente na década de 1990, isto é, após o colapso soviético e a perda, por parte de Cuba, de aproximadamente 80% de seus parceiros comerciais.


 


Desta forma, aos que enxergam dificuldades alimentares em Cuba poderiam, antes de “explanar” tal constatação, ter a capacidade de (além de utilizar as “múltiplas determinações do processo”) explicar como um país com as características de Cuba, com uma população de 11,5 milhões de habitantes (equivalente à de Pequim) pode ficar a frente no quadro de medalhas de um membro do G-7, o Canadá, e de um país com quase 200 milhões de habitantes, o Brasil. Um país que se alimenta mal e habitado por um povo não-hígido (ou conforme o senso comum: “porco”) não pode partir “do nada” a tal excelência olímpica, e muito menos alcançar excelência internacional em matéria de medicina preventiva com resultados – goste ou não o imperialismo e seus deslumbrados – conhecidos por todo mundo.


 


 


Fica uma questão: os cubanos que comem mal ou somos nós que fomos educados à imagem e semelhança da educação de tipo anglo-saxônica, onde a gula de “pecado original” transforma-se em meio para preencher o cada vez maior vazio interno de pessoas? Pessoas estas que, no retrato de Sócrates, “são livres socialmente, porém escravas de si próprias”.


 


Outra questão: qual opção nossos “iluminados” dão a Cuba?


 


Pelo jeito a alternativa poderia ser a dependência cubana da farinha norte-americana.


 


O fim da picada…


 



Igualitarismo x socialismo de mercado


 


A não ocorrência de revoluções no centro do sistema capitalista e as vitórias ocorridas em sua periferia (Rússia, China, Cuba, Vietnã, Coréia etc) fez surgir a discussão acerca da construção do socialismo partindo de uma pobre base material. Disjunções idealistas e a-históricas como o fim o do papel regulador do mercado e da lei do valor ganharam força (R. Luxemburgo, N. Bukharin Guevara p.ex.) e o resultado foi sendo melhor ou pior de acordo com a complexidade de cada formação social e o grau dos desafios impostos de fora para dentro. Acerca da transição socialista na periferia, apesar de polêmico, não creio haver margem para grandes dúvidas acerca da similaridade processual com o caso japonês e sua Inovação Meiji (1868). Momento aquele em que os senhores feudais japoneses tomaram o poder e implantaram, partindo da superestrutura, um Estado capitalista dinâmico dissolvendo as relações feudais e, resumindo, precedendo (o Estado) e criando uma sociedade capitalista sob pressão externa desde 1853 (abertura forçada dos portos).


 


 


Ora, dada a complexidade das tarefas, em toda a periferia em transição ao socialismo – exemplo das transições no feudalismo-capitalismo no Japão e na Alemanha – a “via prussiana” foi o mote. Pois, ao invés de implantar diretamente novas relações de produção, inúmeros desafios historicamente concebidos à burguesia tiveram de ser enfrentados pelos novos poderes populares em gestação. Entre eles, a industrialização, a reforma agrária e a universalização da educação. Isso sem falar da magnitude do enfrentamento à ingerência externa, ou melhor, da sobrevivência da revolução. É o caso de Cuba e sua soma de determinações (já elencadas de forma geral) altamente complexas.


 


 


Pode parecer prolixo, mas partindo dos dois parágrafos acima, ao invés de se ficar na superficialidade contra-revolucionária de se “explanar” acerca da escassez tópica de alimentos em Cuba, qual debate que teria de interessar aos que, como eu, estão curiosos em saber o desenrolar dos acontecimentos nesta ilha caribenha?


 


 


A discussão da escassez demanda o aprofundamento de um outro tipo de discussão: qual política econômica se adequaria aos atuais desafios impostos a Cuba, cuja deserção de atletas é uma expressão do nível de complicação de tais desafios? Sob meu ponto de vista, a discussão se remete à questão que envolve o abandono de políticas de caráter igualitarista em detrimento de cada vez maior aprofundamento de um socialismo de mercado, evidentemente à moda cubana. Porém uma visão de conjunto faz-se altamente necessária a esta análise.


 


 


Existem prós e contras de ambos os lados. Se o igualitarismo (expressão da força do catolicismo naquela formação social) traz benefícios no sentido de uma distribuição mais igualitária de renda e de uma pobreza longe da miserabilidade presente em países como o Haiti e a República Dominicana, por outro lado não resolve o problema da necessidade de grandiosos investimentos. Investimentos no sentido de transformação de uma grande renda em uma miríade de rendas. Neste quadro, a escassez é um fantasma crônico e que serve, dada a conjuntura internacional, para asfixiar o regime e criar um clima propício aos ocorridos nos últimos Jogos Pan-Americanos.


 


 


Por outro lado a opção pelo socialismo de mercado, que tem ganhado força na Cuba de Raúl Castro, também guarda suas contradições. Em primeiro lugar, Cuba não é China, nem Vietnã. Cuba é Cuba com todas suas complexidades conjunturais. Vê-se um grande aumento da influência chinesa em Cuba, indicando o positivo fato de uma cada vez maior capacidade do governo cubano em planificar seu comércio exterior de forma que todo seu cabedal em medicina e biomedicina e em recursos minerais (níquel) seja uma grande moeda de troca por produtos e máquinas com a própria China, a Venezuela, o Canadá, a Espanha e outros países da União Européia. Um grande ponto do regime (a planificação do comércio exterior) que poucos sublinham por puro desconhecimento de como funciona o processo de acumulação.


 


 


Apesar do grande crescimento econômico verificado na ilha (o maior da América Latina no ano passado), fruto de grandes investimentos estrangeiros sob a forma de joint-ventures no setor de turismo, a desigualdade social e o surgimento de fenômenos decadentes como a corrupção coloca o regime em sinal de alerta aos perigos da abertura ao exterior. Este é um alto preço a se pagar pela implantação de um socialismo de mercado em Cuba. Fator atenuante repousa nas possibilidades de reprodução do regime a partir do aumento do poderio econômico e financeiro de sua grande aliada e amiga, a República Popular da China.


 


Continuemos este debate.



Mais 80 anos para Fidel Castro!!!


 


Um dos grandes legados dos combates entre capitalismo e socialismo no século passado, sem nenhuma sombra de dúvida é o que remete à superioridade moral de nossa proposta de sociedade. Essa superioridade moral foi expressa em campos muito variados, entre eles o da economia, com Nikolai Kondratieff; na política, com Gramsci; na filosofia, com Lukács; no cinema, com Eisenstein e no teatro, com Bertold Brecht. Essa explosão de criatividade intelectual fomentou a luta dos povos em variados cantos do planeta.


 


Em cada lócus surgiram grandes personalidades políticas, cuia integridade moral foi parte principal entre suas diversas qualidades. Na Rússia, o maior revolucionário de todos os tempos, Lênin; Na China com Mao Tsétung, Zhou Enlai e Deng Xiaoping, no Vietnã com Ho Chi Minh e o ex-professor de história, depois general Nguyen Vo Giap. Da península coreana, seu grande líder camponês, Kim Jong Il. Dos campos de batalha africanos, Steve Biko, Patrice Lumumba, Samora Machel e Agostinho Neto. De nossa América lembramos de Prestes, Amazonas, Mariátegui, Hugo Chavez e outros.


 


Especificamente de Cuba lembramos de grandes homens como Camilo Cienfuegos e o universal Ernesto “Che” Guevara (argentino de Rosário). Companheiros de armas – do ainda vivo – e octogenário Fidel Castro Ruz. O grande líder da Revolução e construção socialista de Cuba. Muitos colocam em questão o fato dele ocupar o poder a mais de 40 anos. Mas poucos percebem que dada à religiosidade da formação social cubana e ante os desafios impostos de fora, dificilmente o regime resistiria ao vendaval contra-revolucionário da década de 1990 sem sua presença física. Fidel foi a essência da resistência. Alguém arriscaria um palpite ao contrário? Será que Cuba ainda seria socialista sem Fidel Castro vivo nos últimos 20 anos?


 


Por que será que nenhum presidente da maior superpotência do mundo quis enfrentar um debate frontal e de fundo com o Comandante? Kennedy, Reagan, Bush “pai”, Clinton e outros – devidamente decantados e adocicados pela imprensa de aluguel – teriam “bala na agulha” para enfrentar a metralhadora política, cultural, intelectual e moral de Fidel?


 


É isso: como acredito que viver é escolher um lado (e que a morte leve aqueles incapazes de se posicionar publicamente acerca de qualquer assunto ou controvérsia), fico com uma declaração do desejo de que por mais 80 anos a influência desta figura de caráter universal continue a iluminar os rumos, não somente de Cuba, mas de toda a nossa América Latina.


 


É o mínimo que posso pensar desejar para tão diferenciado ser humano.


 


Viva Fidel!!!!


 


Viva a Revolução Cubana!!!


 


 


Nota:


 


(1) Interessante assinalar que uma das conclusões mais interessantes do debate Dobb-Sweezy acerca da transição feudalismo-capitalismo foi acerca do longo processo histórico entre a transição de um modo de produção e outro. As primeiras experiências de capitalismo surgiram em cidades italianas e holandesas nos séculos 13 e 15, porém não tiveram força de romper o cerco do feudalismo dominante. Somente no século 17 foi rompido o cerco feudal na Inglaterra, via Revolução Puritana, criando as condições objetivas à consolidação do capitalismo como modo de produção progressista em relação ao feudalismo. Acredito caber o mesmo raciocínio acerca da transição presente entre capitalismo e socialismo.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor