“Os Falsários”: lições de sobrevivência
Com trama que foge às dos filmes de ação, diretor austríaco Stefan Ruzowitzky reconstitui os momentos finais do III Reich num campo de concentração em que a solidariedade, a ética e a moral entre os prisioneiros se sobressai
Publicado 26/06/2009 19:32
No momento crucial de “Os Falsários”, do diretor austríaco Stefan Ruzowitzky, uma pergunta se impõe: porque os judeus presos no campo de concentração de Sachsenhausen deveriam ajudar o Reich a ganhar a guerra, se isto representava a morte de milhões deles? O grupo de gráficos forçado a produzir milhões de libras e dólares para desestabilizar a economia da Europa não se fazia esta indagação, mas ela se impunha, estando clara para Burger (August Dichl), jovem militante comunista, cuja companheira estava presa em Auschwitz. Ele se empenhava em fazer com que os demais entendessem este impasse, pois o sucesso da Operação Bernhard, representava a continuidade do extermínio dos próprios judeus. A partir daí, se estabelece o dilema entre evitar o fuzilamento do grupo de cerca de vinte prisioneiros e a morte de milhões de pessoas no teatro de guerra. Uma questão ética e moral que se sobrepunha a tudo, inclusive à sobrevivência deles, pois caso continuassem a produzir notas falsas, o Terceiro Reich sobreviveria e a II Guerra Mundial não teria acabado em 1945.
Com estas questões, o diretor Ruzowitzky, a partir da história real do falsificador judeu russo, Salomon Sorowitsch (Karl Warkovics), desenvolve uma série de entrechos, que encadeados deixam clara a dimensão do poderio do III Reich, em sua desesperada busca de sobrevivência no ocaso do segundo conflito mundial que deixou cerca de 52 milhões de mortos. Sorowitsch, chamado Solly, era um artista plástico de notável talento, formado na Academia de Belas Artes de Odessa, União Soviética, que preferiu se dedicar à falsificação de moeda, por ser mais lucrativa. E que tinha forte inclinação pelo jogo e trapaças, sem ligar para o perigo que isto representava. Escolhido pelo comandante de Sachsenhausen, Friedrich Herzog (Devid Stricsow), que o conhecia de Viena, para chefiar a equipe de gráficos judeus, ele tem de se equilibrar entre as imposições nazistas e a necessidade de ser solidário ao seu povo. Os limites são tênues como o espectador vai percebendo aos poucos até ficar entre ele, Solly, e Burger, tido em princípio como intransigente, mas que se mostra o mais lúcido entre os demais membros do grupo.
Falsificação de moeda visava desestabilizar a Europa
No centro destes impasses estava a Operação Bernhard, montada pelo Reich para financiar a continuidade da guerra e desestabilizar a economia britânica, em princípio, e a dos EUA em seguida. No final, seus efeitos deveriam se multiplicar para toda a Europa. Havia, deste modo, muito mais em jogo do que os gráficos judeus escolhidos poderiam imaginar. A mente do combalido Burger, sobrevivente de vários campos de concentração, vai pontuando os efeitos políticos das táticas adotadas por Hitler, com seu jeito raivoso, cortante, que põe Solly em polvorosa e o testa a todo instante. Inclusive sua solidariedade ao jovem artista plástico, Kolya (Sebastian Urzendowiky), frágil demais para livrar-se das armadilhas do cruel oficial Horst (Martin Brambach). Enquanto, os outros se enovelavam em sua própria sobrevivência sem atentar para a gigantesca máquina em ação, eles percebem o papel que jogavam e o que deveriam fazer para não pôr em risco a vida do grupo.
Estamos, assim, distante dos filmes de guerra que reúnem um grupo de especialistas para por abaixo uma fortaleza ou eliminar um comando hitlerista. Ruzowitzky não se vale das tiradas filosóficas em sua obra, a exemplo de Jean Renoir, em “A Grande Ilusão”, ou da habilidade e frieza de assassinos, postos em ação por Robert Aldrich, em “Os Doze Condenados”. Seus personagens são pessoas reais, cujas vidas comuns foram interrompidas pela sede de poder da elite alemã que se uniu à Adolf Hitler para atingir seus objetivos político-econômicos. São como o bonachão Atze (Veit Stübner), sempre disposto a encontrar uma saída para evitar que seus companheiros sejam vitimados por Horst. Eles não são dados a lances de heroísmo; o sacrifício, o sofrimento e a luta desesperada pela vida estão por demais entranhados neles para que vejam para além do que fazem. Qualquer fresta na janela serve para que vejam nela uma saída para continuarem vivendo. Só Burger os chama à razão: ”Estão acabando com todos nós”, pondo-os de sobreaviso. Para Ruzowitzky é preciso lucidez mesmo em meio à insanidade.
Contradição entre Burger e o grupo se impõe
uzowitzky os tornam seres dotados mais de instinto do que de razão. Burger, embora não seja o personagem principal de “Os Falsários”, é sua consciência, aquele que procura manter a lucidez em meio às piores vicissitudes. Mesmo quando ele é irascível, lutando contra tudo e todos; aponta os interesses em jogo. É o contraponto ao frio Solly, mestre da sobrevivência, que faz o jogo de Herzog para livrar a própria pele. “Não vou dar este prazer aos nazistas”, ele diz, justificando sua luta para se manter vivo. É bela a cena de discussão entre eles, para saber quem iria sucumbir às imposições da máquina nazista. Dois homens de grande inteligência vendo que havia algo maior que eles próprios: a sobrevivência a qualquer preço e a solidariedade para Solly, a necessidade de derrotar o Reich em seus próprios termos, para Burger. Isto porque, para este, tratava-se de evitar que, ao tentar sobreviver, o grupo levasse à morte milhões de pessoas, fossem elas judias ou não. Ruzowitzky consegue passar estas diferenças através de diálogos claros, que fluem sem discursos, justificativas, apenas pelo comportamento dos personagens, interpretados com garra e eficiência pelos brilhantes atores August Dichl e Karl Warkovics.
A carga sinistra que os diálogos, as situações, os movimentos dos personagens e os cenários criam contribuem para o espectador seguir a narrativa sem tempo para respirar. A fotografia em tons verdes escuros, cinzenta, torna o clima ainda mais opressivo. Não há cor que destoe, que desvie sua atenção. Detalhes podem escapar; eles são importantes para ele; espectador, entender a importância que o grupo de gráficos tem para o Reich. Eles têm certas regalias, podem escapar ao uniforme de listrado, até certo ponto (o espectador irá percebê-los vendo o filme), ter a sensação de levar uma vida comum, enquanto do outro lado do muro que os separam do barracão onde estão; o extermínio corre solto. Mas nada, nos diz Ruzowitzky, foi aprazível para estes seres confinados numa frágil gaiola, o cruel Horst há todo momento chamava-lhes atenção para sua condição de prisioneiros do Reich. Sinal de que a guerra, fora de seu jogo financeiro e das aparências, conduz seu lado atroz, patológico, de eliminação pura e simples.
Diretor diferencia os membros do grupo
Crueldades que levam os prisioneiros que ficavam do outro lado do murro a confundi-los com os nazistas, numa bela seqüência do filme, como privilegiados, devendo por isto ser eliminados. Os esforços que Burger, Atze e Solly fazem para convencê-los são desesperados. Uma espécie de luta de classe emerge dali, os despossuídos assumem o poder, buscando se livrar de quem os havia humilhado e ameaçado de extermínio. Uma posição corajosa de Ruzowitzky para o confronto entre seres de classes antagônicas. E justifica a recuperação deste episódio desconhecido da II Guerra Mundial (1939/1945). O diretor discerne para o espectador as diferenças entre as várias camadas de judeus ali presos, do banqueiro Victor Hahn, que não queria se misturar com o falsificador Solly, ao jovem comunista Burger, passando pelo desesperado fotógrafo Zilinsky (Andréas Schmidt). Cada um deles tinha uma visão adversa do processo de sobrevivência, e são integrados ao grupo no limite de seu conhecimento. A uni-los há, sobretudo, a condição de seres humanos estigmatizados e escolhidos pelo regime que engendrou a “Solução Final”.
Com uma abordagem desta dimensão, Ruzowitzky poderia ter-se dado por satisfeito, ele ainda brinda o espectador, acostumado a obras que refletem a condição humana e, por que não, aos impasses político-ideológicos, com uma seqüência de grande cinema. Consegue passar a sensação de vazio quando tudo se esvai. O sentido de que o mal se foi, desapareceu sem estrondos, pelo menos na área em que se encontrava. Ao contrário das costumeiras sequências da multidão abraçando soldados no final do conflito – vide a série “Band of Brothers”(ótima) ou “Paris Está em Chamas?”, para citar dois exemplos, Ruzowitzky faz sua câmera passear por barracões vazios, terra enlameada, prisioneiros andando a esmo, aturdidos com a súbita liberdade. Não há confraternização, alegria, pulos, parece que tudo foi um pesadelo e eles acabam de acordar. Tudo, entretanto, é real, e precisam agora recomeçar a vida e isto sequer ainda podem colocar. Os nostálgicos e angustiantes acordes de tango enfatizam esta sensação de queda, que Burger traz na face. Um grande instante de cinema – e, como diz Hegel, “contraditoriamente a arte traduz em beleza os instantes em que a realidade é feia”(1).
“Os Falsários” (“Die Salscher”). Drama. Alemanha/Áustria. 2007. 98 minutos. Roteiro/direção: Stefan Ruzowitzky. Elenco: Karl Markovics, August Dichl, Devid Stricsow, Martin Brambach, August Zimmer, Veit Stübner, Sebastian Urzendowsky, Andreas Schmidt.
Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2008
(1) Hegel, Georg Wihelm Friedrich, “O Belo na Arte”, Livraria Martins Fontes Editora Ltda, 1996.
Tem a ver
Muitos filmes merecem ser vistos pelo tema e pela abordagem que seus diretores, muitas vezes desconhecidos, lhes dão. A coluna, que às sextas-feiras, veicula análise de um filme em cartaz, trás breves comentários de um ou mais deles, para que o leitor possa assisti-los em reprises, mostra dos melhores do ano ou em DVD. É uma forma de não deixá-los à margem da discussão como os dois que comentamos abaixo, que mostram como seus diretores usaram a II Guerra Mundial, sob ótica adversa à da obra analisada nesta semana, para conscientizar o público.
“O Ovo da Serpente” (“Ormens ägg – das schlangenei the serpent egg”). Drama. Alemanha/EUA. 1976. 199 minutos.Roteiro/Direção: Ingmar Bergman. Elenco: Liv Ullman, David Carradine, Gert Fröbe, Heinz Bennet, James Whitmore. Feito durante seu curto exílio na Alemanha, este filme de Bergman trata do nascimento do nazismo. Através da atribulada relação entre o trapezista Abel Rosemberg (David Carradine) e a prostituta Manuela (Liv Ullman), ele avança para as experiências do cientista Hans Vergérus com seres humanos, fato que viria acontecer anos depois durante o regime nazista. Um registro menos intimista, comum em sua cinebiografia, mas que mostra sua preocupação com os problemas de nosso tempo.
“Paris está em Chamas?” (“Is Paris burning?”). Drama. EUA/França. 1966. 159 minutos. Roteiro: Gore Vidal/Francis Ford Coppola. Baseado no best-seller homônimo de Larry Collins e Dominique Lapierre. Elenco: Jean-Paul Belmondo, Charles Boyer, Alain Delon, Ives Montand, Kirk Douglas, Anthony Perkins, Simone Signoret, Orson Welles, Leslie Caron, Glenn Ford. Elenco de estrelas reunido pelo director francês René Clement (“O Sol por Testemunha”), para contar a história da resistência francesa durante a II Guerra Mundial. São pequenos incidentes que reconstituem as dificuldades deles para enfrentar os alemães em Paris, quando o plano de Hitler era incendiá-la, como Nero fez com Roma na antiguidade. A trilha sonora de Maurice Jarre contribui para o clima de heroísmo que o filme consegue transmitir.