Para entender o calvinismo

Circula na internet um vídeo em que a cantora e pastora Ana Paula Valadão, da Igreja Lagoinha, profere a seguinte frase: “Iremos, iremos sim para aquela área mais temida pelas trevas, para que a nossa invasão venha a mudar a história. Nós estamos indo Satanás para a política brasileira e as forças do inferno não prevalecerão contra a força do Senhor.” A cantora do grupo Diante do Trono finaliza: “É chegada a tua hora, é chegada a hora da Igreja.”

Há quem diga que este vídeo está sendo enviado para os eleitores evangélicos.

Confira: https://www.youtube.com/watch?v=sN-VIShhBPU

Respeito e prezo pela liberdade de crença e pela diversidade religiosa, mas isso não significa que ficarei estático diante de discursos como esse. Do mesmo modo que a líder religiosa tem suas intenções, eu também tenho os meus para refutá-la. Vida civil e vida religiosa devem estar tão separadas como o céu e a terra, já dizia o filósofo liberal John Locke.

Este vídeo me faz lembrar alguns conceitos do teólogo reformador, João Calvino.
Entres os temas e/ou conceitos importantes do calvinismo, destaco cinco: 1) Moral; 2) A relação entre a sociedade civil e a eclesiástica; 3) Magistrado civil; 4) A teoria da resistência; 5) A forma de governo.

Para Calvino, a moral é compreendida a partir da queda de Adão e do pecado original. O percurso humano até a imortalidade da alma é longo e passa pela encarnação de Deus na figura de Jesus Cristo.

Esta queda não é natural. É originada na degeneração que Adão e Eva promoveram após comer o fruto proibido. Por conseguinte, os seres humanos nascem pecadores e tudo que realizam ou fazem tem a semente da corrupção.

Então, como o indivíduo pode se redimir do pecado original?

A figura de Jesus Cristo, como encarnação do Senhor, cumpre a tarefa educativa para cada ser humano. Através da prática da piedade, da caridade, da mensagem de paz e da sabedoria, Cristo torna-se o exemplo a ser seguido por todos.

Do mesmo modo, o que Calvino deseja é que a iniciativa divina restaure a humanidade corrompida. Para que isso ocorra, a primeira condição é que o homem conheça e aceite o evangelho. A segunda é compreender que o poder terreno é inferior em relação ao poder divino, ao poder de Deus: “É preciso obedecer antes a Deus do que aos homens” (Atos 5, 29).

O segundo conceito a ser observado diz respeito à relação entre o poder político e o eclesiástico. Para tanto, parte-se da seguinte questão: É possível afirmar, com base na teologia calvinista, que há uma separação entre a vida religiosa e a civil?

No texto intitulado Sobre o governo civil, Calvino expõe a defesa da dissociação entre o poder eclesiástico e o civil. O primeiro rege os assuntos da alma e da vida eterna. O segundo aborda os assuntos mundanos.

o de três partes: a primeira é o magistrado, responsável para defender as leis; a segunda são as próprias leis ao qual o magistrado age; e a terceira é o povo, que é governado pelas leis e obedece ao magistrado.

O magistrado é legitimado pelas Sagradas Escrituras. Tem como propósito a proteção dos inocentes, a defesa da propriedade, além de garantir a paz e o bem-estar social. Ele cumpre uma tarefa designada pelo poder divino, mesmo exercendo sua função em um Estado secular.
Assim, o magistrado age sob inspiração divina, como atesta o próprio Calvino: “A punição imposta pelo magistrado deve ser vista como algo atribuído por Deus e não pelos homens, pois é Deus que age dessa maneira para nosso bem por intermédio do ministério dos homens, como afirma São Paulo.” (CALVINO: 1995, 117-118).

O quarto conceito a ser observado é denominado de a teoria da resistência. Calvino parte da seguinte indagação: Quando o magistrado não cumpre com as obrigações, ele deve ser considerado uma autoridade legítima? Para equacionar esta questão, aparece a figura do magistrado inferior, que tem a função de restringir a arbitrariedade do magistrado. Grosso modo, o magistrado inferior é todo aquele que não exerce função pública.

O último aspecto diz respeito ao fato de que, para Calvino, não há nenhuma forma ideal de governo. Assim, o critério para a composição de um governo deve ter nos efeitos que ele pode propiciar e não as causas que o motiva o elemento norteador.

É neste contexto que as palavras da pastora Ana Paula Valadão precisam ser compreendidas. Elas fazem parte do vocabulário calvinista. No entanto, isso não legitima a intervenção política de qualquer crença religiosa. Pelo contrário. Permite-me compreender o fenômeno citado e intervir nele.

Digo isso, para finalizar, que a constituição de uma república democrática requer um Estado laico. Não são velhas receitas que flertam com a teocracia que irão equacionar os problemas morais do país. Por isso, entendedores entenderão.

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