Paradoxos da pandemia

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A internet e o trabalho à distância

Um paradoxo se impõe nas nossas vidas por força do novo coronavírus (o SARS-CoV-2) e da doença que se alastra (Covid-19): precisamos de estar isolados e, simultaneamente, mais unidos. Para contornar este paradoxo, surgiu uma primeira resposta de base tecnológica – o teletrabalho – onde os recursos cibernéticos são assumidos como instrumento essencial em muitas actividades (nas áreas administrativas, educativas, de gestão e comunicação, entre outras).

A internet – elemento “omnipresente” no mundo globalizado – surge como instrumento essencial na resposta a uma crise de saúde pública que se expandiu à escala de pandemia em poucos meses também porque a sociedade está, cada vez mais, globalizada. No entanto, a ideia de “omnipresença” da internet deve ser assumida com cautelas: há diferenças regionais no acesso e, também, diferenças consoante a capacidade económica.

O recurso ao teletrabalho faz com que dados, muitas vezes considerados reservados, sobre pessoas e entidades, passem a circular pela rede virtual, tornando-se presa mais acessível ao crime cibernético. E, enquanto os governos começam a funcionar com recurso à comunicação virtual, com recursos tecnológicos que, assim se espera, sejam os mais seguros, os cidadãos devem adaptar a sua vida aos recursos existentes.

Se criação da “multidão de indivíduos isolados” era, até bem pouco, considerada uma das consequências mais nefastas das redes sociais, hoje é à internet e a essa mesma consequência que se recorre para fazer face ao isolamento forçado pela pandemia. Resposta possível e necessária no imediato, mas com custos sérios a longo prazo – a comunidade mal começava a tomar consciência dos malefícios de um uso desregrado das tecnologias para cair, agora totalmente, na dependência desta. Mas, dirão muitos, esse é um problema menor, se comparado com o da pandemia provocada pelo SARS-CoV-2. É, de facto, menor. Mas será um problema sério no futuro (até porque não sabemos quando esta crise poderá ser superada).

A «intranet» e a defesa da soberania nacional

Cuba, adoptou a estratégia interna de superação da condição insular (e, também, de superação do bloqueio norte-americano) desenvolvendo a sua «intranet». O mesmo fizeram recentemente a China e a Rússia, também por razões de ordem geopolítica. A internet é um espaço virtual em que se colocam sérios problemas de soberania e, apontando os dados de evolução da pandemia para os EUA se tornarem no novo epicentro da Covid-19 (como alerta a OMS), não é improvável virmos a ser confrontados com limitações no espaço virtual, dada a centralidade que assumem os EUA nesse âmbito.

Sendo o ciberespaço um terreno de soberania, é também um espaço de conflito geopolítico. A luta contra o novo coronavírus é uma necessidade global que logo se confrontará com os objectivos de cada nação, dos blocos político-económicos, refletindo-se ao nível das superestruturas governamentais supra-nacionais. Mas, seja pela inércia de processos antecedentes, em que aqueles objectivos se encontravam em acesa competição (recordemos, por exemplo, as limitações impostas pelos EUA à Huawei), seja por razões determinadas pela lógica de mercado (numa perspectiva capitalista, o vector principal da economia), é previsível surgirem limitações ao uso do própria internet. Em Portugal, uma iniciativa foi já tomada pelo governo, a permitir às principais operadoras a limitação do serviço quando estas se vejam em dificuldades para garantir o tráfego de dados.

Impactos diversos da Covid-19

A Covid-19 tem mostrado impactos diversos em diferentes países. Vários serão os factores a considerar para que os números, e as “curvas estatísticas” que representam a evolução da pandemia sejam diversas em cada nação. Na Europa, os exemplos de Espanha e Alemanha apresentam-se como exemplo de duas realidades em evolução bem diversa: a Alemanha, com 39502 casos, 3547 recuperados e 209 mortes registadas, e a Espanha com 56188 casos, 5367 recuperados e 3647 mortes registadas. O número de recuperados é proporcional, mas o de fatalidades não. Qual a justificação? Segundo alguns analistas «Um dos primeiros factores apontados para o menor número de mortos foi a grande vantagem da Alemanha em relação a camas disponíveis nos cuidados intensivos – 28 mil, ou seja, 30 por cem mil habitantes, o maior rácio de toda a União Europeia. Ainda assim, a capacidade é considerada insuficiente e as autoridades de Saúde estão a tentar aumentá-la rapidamente». Outra razão se aponta: «Lothar Wieler, o presidente do Robert Koch Institut (a autoridade de saúde que está a gerir a pandemia), diz que a Alemanha está a fazer cerca de 160 mil testes por semana – o mesmo número, acrescenta o Financial Times, que alguns países fizeram ao todo desde o início da crise» .

A Alemanha aposta na prevenção e na antecipação ao problema, contrariamente a outros países que, como se costuma dizer, «correm atrás do prejuízo». Esse é o caso em que, aparentemente, se encontram a Itália e a Espanha –  note-se que cada um destes países já superam, em número de fatalidades atribuídas à Covid-19, a China (com os seus 1.4 bilhões de habitantes).

É certo que o índice etário é um dos vectores a considerar (e a Europa apresenta uma população envelhecida). Mas, no caso dos países latinos (Itália, Espanha e Portugal), concorrem para o impacte da pandemia traços que são também de ordem sociocultural (no modo como as famílias se estruturam e nas formas de convívio social) que terão estado na origem de um início mais acentuado da epidemia, além das razões sócio-económicas (e, neste âmbito, o problema dos lares de idosos, que se tornaram centros de elevado risco).

Profissionais de saúde

Numa situação de crise aguda, os profissionais de saúde continuam a não ter as condições de tratamento e vigilância que a sua circunstância aconselha: refere uma ex-ministra da saúde portuguesa sai «em defesa dos profissionais de Saúde e afirma que “temos que os proteger” (…) que não podem faltar máscaras e outros equipamentos [e que] «a prioridade das autoridades deve ser a proteção de quem está na linha da frente, a lidar com doentes infetados com Covid 19, nos hospitais públicos». Ora, se esta ex-governante portuguesa o diz é porque, obviamente, em Portugal tal não está a acontecer.

Como noticia a imprensa brasileira, a Covid-19 «deixa milhares de profissionais de saúde fora de combate na Europa» . E o que se passa no Brasil?

Uma notícia publicada no site ElPais.com é elucidativa: «Faz 51 anos que o médico R.B. trabalha no Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo. Hoje, aos 78 anos e diante da maior crise de saúde pública da história recente do Brasil, ele acompanha a pandemia do coronavírus longe do hospital. Embora não tenha nenhuma comorbidade, sua idade o coloca no grupo mais vulnerável diante dos riscos da Covid-19. De casa, por telefone, ele conta sobre o dilema de ter de se afastar do trabalho. “Os colegas mais jovens me falaram para eu ficar em casa. E, nessa idade, a gente já está um pouco fora da linha de frente, então eu poderia, sob esse ponto de vista de medicina prática, me afastar”, diz. “Mas fica uma situação chata. Somos em 30 colegas na minha equipe, eu sou o mais velho, mas muitos tem mais de 60. Se eu me coloquei na situação de médico ativo, eu não poderia recuar nessa hora”. (…) Essa situação é um dos reflexos da ausência de novos concursos para a contratação na área da Saúde. “Não há novos concursos para a Saúde do Estado de São Paulo desde 2015”».

O Brasil começa a acordar

A data referida acima merece ser sublinhada – aponta o momento de início da mudança política no Brasil, que começou com o impeachment imposto à presidente Dilma Rousseff, passou pela subida ao poder de Michel Temer (que, depois, acabou preso por corrupção) e desembocou na eleição de Jair Bolsonaro, com um discurso que, neste momento, é considerado “lunático” e “irresponsável”.

Bolsonaro propugna o fim do isolamento como estratégia de combate ao SARS-CoV-2, designando a Covid-19 como “gripezinha”, Bolsonaro entrou em choque com o servico nacional de saúde, com a generalidade de governadores e prefeitos e até com os seus apoiantes mais próximos . As atitudes de Bolsonaro indiciam um profundo descontrole. E, sinal de que a situação se deverá agravar subitamente, os EUA orientam os seus cidadãos no Brasil a retornar imediatamente. A «diretriz indica que o Departamento de Estado dos EUA acredita que a situação é “crítica”, embora a repatriação de estrangeiros seja prática comum para a diplomacia. Ainda que Jair Bolsonaro busque ressaltar seus laços com o presidente dos EUA, Donald Trump, a pandemia é uma realidade» .

Bolsonaro pretende o fim do isolamento social unicamente por critério economicista. E, seguindo esse critério, pouco lhe importa que haja milhares de brasileiros sacrificados pela pandemia. Age da mesma forma que um governante do Japão, ao dizer, em 2013, que «que idosos doentes devem “morrer rapidamente” para o bem da economia».

A cegueira de Bolsonaro e o seu descontrole fazem com que a sociedade brasileira acorde para a necessidade imperiosa da destituição do presidente por demostrada incapacidade para o exercício do cargo, necessidade que já une o centro-direita e a esquerda brasileira, apontando para uma nova dinâmica governativa, que nasce na união de esforços dos governadores, de norte a sul do país, pois um dos parâmetros que determinará o sucesso ou insucesso de cada nação perante a pandemia é o da lucidez e da competência dos seus governantes. Mas, além do combate imediato ao SARS-CoV-2, há que preparar o país para as consequências que advirão a nível económico, defendendo a esse nível a população em geral, em primeiro lugar a classe trabalhadora (a verdadeira geradora de riqueza).

O Brasil começa a acordar em face do seu problema maior – e esse problema tem o nome Bolsonaro. A crise social em que o capitalismo e a “ultra-direita-lunática” colocou o Brasil acentuou-se com a crise do coronavírus. A pandemia impõe novas formas de actuação cívica exige novas formas de actuação política. Dialecticamente, requer da sociedade civil uma capacidade de reforço das suas estruturas de participação (partidos, sindicatos, organizações culturais e outras) e de actualização das suas formas de comunicação e interacção, de contacto e diálogo, na construção de uma sociedade mais justa e humana.

E no coração do imperialismo? Duas questões

Os EUA já beiram os 70 mil casos confirmados de infecção pelo SARS-CoV-2 (de 2 de março ao momento actual, multiplicou praticamente por 1000 vezes o número oficial de casos, com mais de um milhar de mortes atribuídas à Covid-19). É certo que se trata de números oficiais, pois a realidade deve ser – como em muitos outros cenários – bem maior. Segundo um responsável do serviço de saúde italiano, entre os casos conhecidos e os casos pode haver uma relação de 1 para 10 . E nos EUA?

Segundo a NBC, o «Departamento de Justiça dos EUA notificou os promotores federais do país de que qualquer pessoa que ameaça ou tenta espalhar o coronavírus pode ser acusada de terrorismo. O coronavírus parece atender à definição estatutária de um agente biológico, disse o vice-procurador-geral Jeffrey Rosen em um memorando enviado na terça-feira a advogados dos EUA e agências federais de aplicação da lei e pode trazer crimes relacionados a ele sob estatutos de terrorismo. “Ameaças ou tentativas de usar o COVID-19 como uma arma contra os americanos não serão toleradas”, diz o memorando. Nova Jersey já invocou sua própria versão das leis, acusando um homem de fazer uma ameaça terrorista, tossindo sobre um funcionário de um supermercado e alegando que estava infectado com o vírus.  As autoridades de Illinois, Missouri e Pensilvânia relataram crimes semelhantes» ). Será a medida também aplicável ao laboratório do exército norte-americano, localizado em Fort Detrick, que o CDC também norte-americano determinou suspender as actividades por haver detectado falhas sérias e risco de contaminação da atmosfera por agentes patógenos (nomeadamente, vírus)? Segundo o site “Worldometer”, neste momento, os USA passaram a ser o país com mais casos de infecção pela Covid-19, com 83113 casos.

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