Parlamentarismo de ocasião: “Missão Impossível” de Lula

Desafios políticos e busca por governabilidade marcam o governo Lula, enquanto o Presidente da Câmara, Arthur Lira, figura como um ponto de instabilidade.

O presidente do Brasil, Luis Inácio Lula da Silva | Foto: André Borges/EPA

A votação na Câmara Federal da nova regra fiscal para substituir teto de gastos foi o ponto positivo mais alto na maratona de testes de governabilidade do governo Lula. O placar elástico a favor do governo (372 x 108), quando contrastado com o andamento de temas como o Decreto do Marco do Saneamento, a Medida Provisória da reorganização ministerial, ou o Marco Temporal da demarcação das Terras Indígenas, mostram uma realidade política desafiadora. A derrota da aliança do governo Lula com a Rede Globo e a grande mídia, juntos com o líder do Centrão e Presidente da Câmara, deputado Arthur Lira, no tema do PL das Fake News, nos mostra uma realidade política na beiradinha da ingovernabilidade.

A situação de aparente descontrole possui um núcleo desorganizador que responde pelo nome de Arthur Lira, Presidente da Câmara, símbolo e líder do Centrão, e aspirante a primeiro-ministro “prático” ou ministro oculto da Casa Civil. E ele não tem estas aspirações à toa. Fez este papel na segunda metade do governo Bolsonaro, quando lhe foram delegados poderes executivos, desde que blindasse o Executivo de investigações, missão que foi cumprida com esmero, soberano que era e é no plenário, quando se trata de manejar os instintos mais selvagens dos deputados. O símbolo maior da governança de Lira no período Bolsonaro foi o Orçamento Secreto, apelidado para o paladar republicano de Emendas do Relator. Foi com os recursos deste orçamento secreto que o atual Congresso foi eleito, potencializando o voto conservador e fascista já crescente na sociedade e dando maioria às forças contrárias às teses progressistas do núcleo ideológico central do governo Lula.

O resultado eleitoral de 2022 deu força a Lira. As principais figuras do Bolsonarismo se elegeram, incluídas as da Lava Jato, destaque para o Senado. A Direita cresceu. A Extrema Direita cresceu em número e organicidade. A esquerda e a centro esquerda mantiveram-se sem votos sequer para atingir sozinhas quórum para abrir uma CPI. Existiu até um gostinho de vitória política do lado das forças conservadoras, acentuado com a vitória apertada de Lula no segundo turno, que assumiu seu terceiro mandato com um Congresso de centro direita, com viés de direita. O aumento do poder de Lira, contudo, foi relativizado antes mesmo da posse dos eleitos. Ainda em dezembro de 22 ele viu, irresignado, as forças progressistas e republicanas comemorarem o fim do “seu” Orçamento Secreto em votação no STF. A rigor, a Corte Suprema decidiu ali, mais uma vez, que o regime de governo não é parlamentarista.

Lula, vitorioso nas urnas e na peleja fundamental do orçamento secreto, mas ainda respirando numa atmosfera golpista, corretamente orientou sua minoritária base a apoiar a reeleição de Lira na posse da nova Câmara. Foi uma vitória acachapante. Os atos golpistas de 08/01, que foram uma culminância de uma série de ações golpistas e terroristas pós vitória de Lula, depredando os três poderes, fizeram penetrar na opinião pública um humor distinto, em desfavor da extrema direita e dos militares golpistas. Uma nova conjuntura se abriu na superestrutura política e se impôs nos corredores e gabinetes do Congresso.

O presidente Lula ganhou mais autoridade moral e política, é verdade, e os acampamentos nos quartéis foram desfeitos com mais força moral do que física, centenas de golpistas presos, militares acuados, lavajatistas ofuscados e investigados. Contudo, até esta vitória da democracia conferiu a Lira uma maior utilidade na governabilidade do Congresso. Os desgarrados, perdidos ou instáveis deputados da extrema direita e da direita não tem potencial para se aproximar de Lula, mas sim da manada do Centrão, governada por Lira. Ou seja, nas polarizações reais da Casa, Lira melhorou sua correlação de forças.

É neste cenário que o Presidente da Câmara avisa e repisa seu mantra todos os dias: o governo Lula não tem maioria na Casa para aprovar qualquer projeto. Não perde oportunidades para desidratar a autoridade dos ministros que cuidam da articulação política, Alexandre Padilha e Rui Costa. Na votação do arcabouço fiscal, o ministro Haddad teve que percorrer os corredores da Câmara e negociar com Lira, que após a vitória do governo fez questão de grifar o nome de Haddad no processo, gerando nos medianos observadores uma nítida sensação de ausência da articulação política do governo. No espinhoso tema da taxa de juros, em que Lula enfrenta publicamente o presidente do Banco Central que abusa de sua autonomia e mandato, operando taxas que sabotam o crescimento econômico, Lira se insurge avisando que o governo não aprovará regras que alterem a autonomia da autoridade monetária.

O governo Lula está se desdobrando para caminhar pra frente neste terreno minado. O balanço é positivo. Na política internacional tem sido corajoso e altivo numa conjuntura difícil, atuando com protagonismo. Está contornando uma grave crise com os militares, agiu muito bem nos episódios golpistas, resolveu com rapidez a situação dos Ianomâmis. Baixou o preço dos combustíveis e do gás de cozinha. Garantiu o Bolsa Família, ajustou a tabela do Imposto de Renda, aumentou o Salário Mínimo acima da inflação, a “picanha” baixou de preço. Está voltando com o Minha Casa Minha Vida e Mais Médicos, incentivos à indústria automobilística. Aprovou a nova política fiscal quebrando a lógica ortodoxa do teto de gastos. Compôs o governo dando protagonismo a indígenas, mulheres, negros, direitos humanos, meio ambiente.

Nosso Presidente lidera um governo de Frente Ampla e salvação nacional, que derrotou uma articulação que estava destruindo o país. Governos com esta característica carregam na sua essência contradições já na sua primeira camada de pele. O vice de Lula é Alckmin. O tecido esgarçado da Frente Ampla berra estridente nas fotos da posse. O ministério vai do União Brasil ao PSOL. A Câmara está com folgada maioria da centro direita. A política monetária está sequestrada por um autônomo e sabotador Banco Central. Lula diz que não podemos nos assustar com a política, e é bom que ele diga isto, pois alguém tem que ter calma nesta hora em que a trilha sonora mais adequada é a da franquia Missão Impossível.

Para onde e como seguir? Dou aqui uns pitacos. Lula deve assumir imediatamente a coordenação cotidiana da articulação política do governo. Seus churrascos amplos tem que voltar. Se há uma missão realmente impossível nesta conjuntura é agradar a todos, todas e todes, portanto o governo tem que ter foco e uma hierarquia rígida de prioridades. A economia, de novo, estúpido, é sempre o prato principal. O arcabouço fiscal, a disputa da política monetária e geração de emprego e melhoria da renda não podem esperar. O governo tem que ganhar sempre onde perder seja uma tragédia, e preferir o empate em último caso. O governo tem que saber perder onde o prejuízo seja administrável, e administrar bem os prejuízos para que não se acumulem e tornem-se algo grave.

A comunicação do governo precisa entrar num “túnel do tempo” e voltar de 2006 para 2023. Faz um “churrasco” com o Paulo Pimenta (só pra ouvir), Flávio Dino (o melhor “garoto propaganda do governo), Janones (o melhor fuzileiro de combate na lama) e o Felipe Neto (maior influencer digital na juventude e que não tem medo de se meter fundo na política), pelo menos. Não basta conter as fake News – tema que o governo está por enquanto em minoria na Câmara -, é preciso dominar a narrativa na disputa da opinião pública. Até aqui o governo tem contado com a ajuda de Deus e dos Orixás, da burrice e desarticulação da extrema direita, e com uma disposição de leão faminto do ministro Alexandre de Moraes de tratar a extrema direita e suas ações como caso de polícia. E o povão e a mídia adoram casos de polícia.

Importante: às forças político-partidárias de esquerda e centro esquerda, sobretudo, não é hora pra lacração e de se diferenciar do governo nos temas fundamentais. É possível marcar posição de forma responsável com o país e com solidariedade com quem está fazendo o trabalho braçal e pesado sustentando os portões contra o aríete da barbárie. Aos movimentos sociais do campo progressista, uma tarefa também estratégica: encontrar dois ou três pontos de convergência e tomar as ruas e praças deste país para exigir do governo e do Congresso que caminhem em favor do povo. À Janja, continue cuidando bem do nosso “velhinho”. Os mandatos de Lira e Campos Neto encerram em dezembro de 24. O de Lula tem que ir até 2030. Mãos à obra!

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