Pedágio Indígena
Recentemente o jornal Folha de São Paulo se escandalizou ao “descobrir” que os “índios” Tikunas organizaram a sua própria polícia, uma “milícia indígena”. Revela apenas o profundo desconhecimento do Brasil, do Brasil real. Mas terão um motivo a mais para se “chocarem” quando forem a BR 230 – a Transamazônica – e constatarem que os índios Tenharim estabeleceram um pedágio para quem deseje ou necessite trafegar naquela rodovia.
Publicado 14/12/2009 23:29
O pedágio se situa entre a vila de Matupi e a cidade de Humaitá (AM), na altura do rio Marmelo com preços variados. Uma carreta paga em torno de 70 reais e o faturamento anual ultrapassa os 500 mil reais, segundo os “usuários” de Matupi, onde estive recentemente. Esses recursos se destinam a suprir as crescentes necessidades materiais dos Tenharins.
Lamentavelmente parece que a ação da FUNAI se encerra após a demarcação da área. Apenas uma grande área não assegura a sobrevivência de grupos que já abandonaram a perambulação e naturalmente não mais vivem de caça e pesca. É preciso atividade produtiva que gere renda, que crie riquezas materiais. Se não existe, eles precisam retirar de alguém.
Encontraram um modo original, copiando dos “brancos”, a cobrança de pedágio.
A transamazônica, como se sabe, foi construída no governo militar e tinha como objetivo, segundo os estrategistas da ditadura militar “ligar uma terra sem homens (alusão ao vazio demográfico da Amazônia) a homens sem terra (alusão ao retirante nordestino)”.
Com base nessa determinação e nesses objetivos, milhares de brasileiros foram incentivados a migrarem para a Transamazônica. Diferente do que se previa os nordestinos não se constituíram no maior contingente migratório. A trágica experiência do “soldado da borracha”, responsável pela morte de milhares de “arigós”, como são conhecidos os nordestinos na Amazônia, talvez explique essa atitude refratária.
Desta feita a maioria dos migrantes que rumaram para a transamazônica foram os sulistas (gaúchos, paranaenses e catarinenses), que igualmente regaram, com seu sangue e muitos cadáveres, cada palmo de terra conquistado. A ocupação da Amazônia exige determinação e sacrifícios, como bem ensina o nosso hino ao dizer que “viver é destino dos fortes, assim nos ensina lutando a floresta”.
Vieram para uma terra aonde o Brasil urbano ainda não chegou. A maioria está literalmente jogado ao longo de uma região erma. Sem luz, água potável, transporte, saúde, educação, assistência técnica e sequer título de propriedade da terra, embora a maioria esteja há mais de 20 anos legalmente assentados pelo INCRA.
E ao lado deles, um grupo de Tenharins, moradores originários, que com toda razão os vê como intrusos. Ambos são vitimas da irracionalidade administrativa desse Brasil das elites que só recentemente, após o governo Lula, começou a ver um pouco o Brasil real.
Esses “brasis” no quais convivem uma indústria de ponta ou uma academia sofisticada ao lado de economias pré-capitalistas e sociedades peculiares, não é um fenômeno novo. Na magnífica obra “à margem da história”, Euclides da Cunha já registrava esses contrastes, que de resto, como se vê, permanecem até hoje.
As revoltas nas províncias, diz o autor de Sertões, “desatavam-se em datas, vinculadas em série no Ceará (1831-1832), Pernambuco (1832-1835), Pará (1835-1837), Bahia (1837-1838), Maranhão (1838-1841), abrangendo-se a longa agitação do Rio Grande (1835-1845)”.
Analisando esses levantes, Euclides da Cunha constata que “Diogo Feijó compreendera que os tumultos federalistas tinham genesis inacessíveis. Uma daquelas revoltas, a ferocíssima Cabanagem do Pará, vencida pelo general Soares de Andréa, em 1836, dera um tipo novo à nossa historia: o cabano. Simbolizava o repontar de questão mais séria, que passou despercebida à sua visão aguda, e se destinava a permanecer na sombra até aos nossos dias”.
Conclui que “era o crescente desequilíbrio entre os homens do sertão e os do litoral… ainda quando se fundissem os grupos abeirados do mar, restariam, ameaçadores, afeitos às mais diversas tradições, distanciado-se do nosso meio e do nosso tempo, aqueles rudes patrícios perdidos no insulamento das chapadas. Ao cabano, se ajuntariam no correr do tempo o balaio, no Maranhão, o chimango, no Ceará, o cangaceiro, em Pernambuco, nomes diversos de uma diátese social única, que chegaria até hoje, projetando nos deslumbramentos da Republica a silhouette trágica do jagunço. Em parte decorrente de nossa amplitude e impenetrabilidade continental”.
A nossa amplitude continua e a nossa impenetrabilidade também, ampliada por uma boa dose de preconceito. Esperamos, portanto, que ela não sirva de base para outros levantes.