“Piaf – Um Hino ao Amor”: Saída das ruas

Cinebiografia da cantora francesa, Edith Piaf , dirigida por Olivier Dahan, mostra suas raízes proletárias, sua ascensão ao mundo dos espetáculos e as tragédias que marcaram sua vida

A vida de Edith Piaf foi pontuada por ilhas de lucidez e limitados instantes de felicidade. Enquanto seus espaços cotidianos foram dominados por intermináveis focos de tragédia. E numa dimensão difícil de ser encontrada mesmo em vidas também marcadas por vícios das mais variadas latitudes. Seu primeiro páreo, que surge sem maior esforço, é “Lady Blue”, a cantora norte-americana Billie Holiday, cujos altos e baixos refletem a entrega total ao viver visceral. De uma forma tão radical, que esse viver se confunde com a arte maior por elas criada. Devido a isto, há todo um clima de símbolos e imagens em torno de suas personas. Ambas vieram do baixo proletariado e se tornaram mitos devido à aparentemente admissível fusão de vidas desregradas e dependência química e alcoólica. Sem estes ingredientes, elas jamais teriam se imortalizado.


 



Ainda mais que viveram na época em que o show bis florescia, com suas imposições mercadológicas, e elas insistissem em viver para a arte. Mas enquanto Billie Holiday ainda não teve uma cinebiografia à altura de contribuição à música popular (Lady Sings the Blues, filme do inglês Sidney Furie, é péssimo), Édith Piaf (Édith Giovanna Cassion – 1915/1963) encontrou em Oliver Dahan um diretor disposto a contar sua história, ainda que carente de retoques. Ele mostra a construção de seu mito, das ruas de Paris até sua transformação em intérprete genial no palco e insuportável na convivência diária. Desbocada, intratável, irritadiça, não se sabe porque a pessoas que a cercavam a toleravam. Estava sempre aos berros, reclamando de algo e insatisfeita com tudo e todos. Não fosse a cantora que era, a forte atração que exercia sobre as pessoas, ninguém ficaria a seu lado mais que um segundo.


 



Porém é essa dualidade que a torna um ser humano fascinante. Ela clama a todo instante por atenção, por reconhecimento, por alguém que possa entender sua carência de afeto. É um passarinho que requer atenção e paciência. Todo esse comportamento deriva do meio social de onde veio. Criada nos cortiços e bordéis parisienses, ela não conhece a candura, a fantasia de criança, a possibilidade de ter uma vida menos atribulada. Sempre lhe falta algo: carinho, comida, um lar. Nunca teve um cantinho onde pudesse crescer sem os atropelos da miséria. A mãe, cantora de rua, se entrega ao sonho da fama, o pai, contorcionista, se divide entre cuidar da filha e viver suas próprias fantasias. A menina, em princípio, terá seu primeiro lar num bordel, onde a prostituta Titine (Emmanuelle Seigner) a trata como filha e lhe dá toda atenção que precisa.


 


 


Sua vida foi marcada por raros momentos de paz


 



Em suas lembranças, em raros momentos de tranqüilidade, esses tempos lhes surgem como dos mais felizes. E numa aparente contradição, de que ela pudesse ser feliz num espaço tido como impróprio para menores e ainda mais para a formação de uma criança. Mas Dahan passa a impressão de que importa mais o amor com que era tratada no prostíbulo do que questões morais e legais. Servia-lhe mais o bordel, como espaço de carinho que o abandono pela mãe nas ruas de Paris, onde lhe faltava afeto, comida e perspectiva de crescer sem feridas no rosto, no corpo e na alma. Seu aprendizado de vida e de arte, porém, se dá com o pai nas ruas dos pobres bairros parisienses. Quando o contorcionismo dele não consegue angariar a simpatia dos passantes, ela, em plena crise econômica dos anos 30, entoa a “Marselhesa”, e salva-lhe o dia. Sua confiança como intérprete vem, portanto, da rua. De alguém capaz de atrair a atenção do público de rua com canções saídas de seu cotidiano.


 


 


Esse aprendizado a prepara para os embates que, a partir daí, serão freqüentes. Aliada à amiga Mômone (Sylvie Testud), ela barganha com a polícia, atende a pedidos de canções e acumula fundos para continuar a viver a seu modo. No entanto, é uma intérprete tosca, sem técnica ou repertório cuidadoso. Mesmo assim encanta. Ganha admiradores, e um cafetão que a explora e a sua amiga Mômone. Não se vê, no entanto, como ela se relaciona com a baixa prostituição. Dahan não a mostra numa cama com um homem; quando muito nas calçadas ou sendo xingada pelo cafetão. O mito aqui pesou mais que a coragem de Dahan, e de sua co-roteirista Isabelle Sobelman, para desnudar sua vida no bordel parisiense. Ele parece mais interessado em sua vida como cantora de rua, com mais sucesso do que a mãe, que continua às voltas com o sonho de se transformar numa grande artista – do que enfocá-la deitada numa cama de sujos lençóis.


 


Como se lembrasse o que lhe reservou a vida, Dahan traça um paralelo entre Piaf e sua mãe. Enquanto uma, aos poucos, torna-se conhecida, a outra chafurda na miséria. As duas se agridem, sem compaixão alguma de uma pela outra. Piaf soube sobreviver a seu modo e, por isto, a despreza. Tratamento adverso tem com o pai, a quem dedica atenção e carinho. O que traduz, sem dúvida, uma vingança contra a mãe que a abandonou. Ela era, assim, vingativa, intransigente, disposta a ignorar quem a atirou às feras. Essa sua faceta aparece ao longo do filme, sob as mais diversas nuances. É uma espécie de Oliver Twist que aprendeu a sobreviver em meio às armadilhas dos bairros pobres, em que a esperteza e, nem sempre a inteligência, fala mais alto. Enfim, uma maneira de superar os obstáculos que usará contra empresários e assessores quando atinge o sucesso no mundo do grande espetáculo.


 


Músicas interpretadas por Piaf contam a vida dos marginalizados


 



É no habitat dickenseano que ela formará seu caráter e criará uma maneira agressiva de cantar. Ajuda-a a música popular francesa, cujas letras contam história de tipos e lugares decaídos, o bas fond. É a música do proletariado, com suas agruras, lutas, desamores e maneiras de enfrentar a vida. Uma análise mais detalhada das canções gravadas por ela neste período contará muito da vida dos estivadores e operários franceses nas décadas de 40 e 50, época em que ainda não tinha mudado seu repertório e forma de cantar. Ives Montand reforça em suas memórias o tipo de música que ela gostava: “(…) Eu passei na rua de Berri (…), pela manhã, para vê-la (…). Ela disse:“Estou ocupada, mas tenho uma canção formidável para você. Leve! E eis-me na rua, com a partitura de La légende du boogie-woogie nas mãos. Coisa medíocre, que tentei, assim mesmo, cantar no Club des Cinq. É a história de um trem que descarrilha…(…)”1 Este era o mundo que ela conhecia, que sabia manipular e retirar dele emoção e conteúdo. E ainda funcionava sem retoques, deixando sobressair apenas sua voz rouca.


 


 


Sua vida começa a mudar quando conhece o empresário de espetáculos Louis Leplée (Gérard Depardieu). Encantam-se um com o outro e ele a apresenta ao diretor de uma gravadora. A Piaf das ruas, das moedas atiradas em seu boné, passa para outro estágio; a arte tosca cede lugar as trocas “mercadológicas” nas relações de diversão, do show business. Ali há contrato, horário, público atento, retorno financeiro e manchetes nos jornais. Seu trabalho enquanto artista não é mais medido por sua capacidade de cantar, de entreter, mas de gerar lucros para os empresários e agentes que a cercam. Se antes, ela podia encantar o público, sem compromisso algum, agora as exigências são outras. Ela deixa de ser uma cantora de rua, lutando para sobreviver, para entrar na roda viva dos empreendimentos musicais.


 


 


O que resta de seus tempos de cantora de rua é seu comportamento arredio, agressivo, desbocado. E passa a áurea de que  não cedeu ao grande mundo. Desmentem-na, no entanto, as canções. Os lamentos, as agruras dos becos e casebres cedem lugar às canções derramadas. La vie en rose. O público muda. Enchem mesas de hotéis luxuosos e de teatros classe A. E, por que não, seus vícios se sofisticam. Numa chocante cena, ela deixa seu empresário francês do lado de fora de seu quarto de hotel, enquanto lá dentro ela e o marido entopem as veias até sangrar. Quando ele decide entrar, encontra-os mergulhados em completa inanição. Dahan não a poupa, tampouco aos empresários que não conseguem domesticar sua fonte de lucros. Aos berros ela lhes faz atender seus caprichos. Ela continua a mesma.


 


 


Mundo dos espetáculos a transformou em fonte de lucros


 


 


O mundo dos espetáculos, que a transformou numa fonte de receitas, retirou dela todo o sumo. Sua nova persona, como interprete, foi construída pelo exigente professor de canto Raymond Asso (Marc Barbé). Ele a faz repetir frases, entonação, ter clareza no fraseado e passar emoção usando as mãos. Sua bela voz de cantora de rua; adiantava pouco. Outras eram as exigências. Ela resiste, mas acaba se submetendo e, a partir daí, integra-se ao music hall. Dahan usa o flashback para mostrar essa mutação. O público está, ao mesmo tempo, na década de 40 e 60, quando ela já se transformara num mito. Ele foge ao estereótipo dos musicais lineares, centrados apenas na emoção, na manipulação, embora seja difícil abordar a intensa vida de um personagem como Piaf sem fazer o público derramar lágrimas.


 



Numa belíssima seqüência, momento em que Piaf se torna Piaf, Dahan envolve o espectador com efeitos sonoros. Cadência, silêncio, música e a voz da verdadeira Piaf. O efeito é deslumbrante. Percebe-se a dimensão da intérprete e a grandeza do cinema. Contribui para esse efeito a atriz Marion Cottilard, uma Piaf cativante, desde que surge com seus grandes olhos, ar áspero, andar encurvado, e muita disposição para transmitir uma vida marcada pela tragédia. A seu lado, os demais atores e atrizes desaparecem. Seu rosto vai de uma nuance à outra, seu corpo dilacerado marca cada etapa de decadência da mulher que viveu intensamente. E em luta constante com os que a cercavam. Num destes momentos, a dupla de desconhecidos compositores entra em seu apartamento e lhe mostra a canção que simbolizará sua carreira e, por que não, sua existência: “Eu não me arrependo de nada…” (Non, je ne regrette rien).


 



Ela a assume através desta canção. Impossível não vê-la em cada etapa de sua vida, combatendo por instantes de quietude. Quando se via na calmaria sobre ela se abatia uma tragédia, depois outra e, por fim, outra. Ela sempre se reerguia, sua voz mutava a dor em canção. Oscilava, parecia decair, encerrar a carreira, insistia, desafiava os fotógrafos que registravam seus shows e sucumbia. A beleza do filme, com toda essa dor de cotovelo, uma vida marcada por quedas, está na dualidade da arte, que tira o belo do feio, do decaído, da miséria e do fracasso. Muitas vezes o muito belo enfada, não tem contraste, é raso. Os momentos de grande intensidade do filme “Piaf – Um Hino ao Amor” estão justamente na possibilidade que a vida de Piaf dá, de ele não ser raso.


 



Filme não abordada relação com Montand e Aznavour


 



Dahan consegue equilibrar essa dualidade. Mas deixa de lado, aspectos poucos lembrados da biografia de Piaf: sua relação com ídolos da canção e do cinema francês. Ele que não receou desnudá-la, entrar em sua intimidade, concentrou-se na única paixão real que teve: o boxeador francês, campeão do mundo, Michel Cerdan (Jean-Pierre Martins). Ele casado, ela sem ligação afetiva alguma. E jogou para as margens figuras centrais de sua vida. Dentre elas, os cantores-atores, Charles Aznavour e Ives Montand. “Profissionalmente devo muito a Edith Piaf. Mas ela não me ´fez´. Ela não me criou. Ela me ajudou – obrigado Edith- e, sobretudo, ela me amou, me apoiou e também me feriu, com tanta sinceridade, tantos risos, tanta graça, que levei anos para me curar”2.
                    


 


Há mágoa no que rememora Montand. Seria interessante saber a que ponto ela o pisou. Assistindo a “Piaf”, entende-se como ela manipulava seus amados. E como dependia dos que a envolviam. Dayan o atesta ao fundir flashback com o instante em que ela recebe a notícia da fatalidade que atingiu Cerdan. Ela o acaricia na cama, sai em busca do ansiado presente que guardara para ele e encontra uma de suas assessoras largada sobre a cadeira. Em princípio nada percebe, apenas o público se dá conta de que algo grave ocorreu. As cenas seguintes delineiam seu mergulho na dor. Bom exemplo de como a dramaturgia pode ser usada em função do filme e da revelação de algo que já se espera. Fica-se com a impressão de que aquilo acontece naquele instante. E este drama-musical (Piaf não é musical, daqueles que se canta ao menor sinal ou tudo se encaminha para a canção) permite, deste modo, bons momentos, e recordações embalados pela voz grave da verdadeira Piaf.


 


“Piaf – Um Hino ao Amor” (La Môme).  França/República Tcheca/Inglaterra. 2007. Drama. Duração: 140 minutos. Roteiro: Olivier Dahan/ Isabelle Sobelman. Fotografia: Tetsuo Nagata. Música: Christopher Gunning. Direção: Olivier Dahan. Elenco: Marion Cottilard, Gérard Depardieu, Jean-Pierre Martins, Raymond Asso, Sylvie Testud, Emmanuelle Seigner.


 


Nota


 



(1) Rotman, Patrick, Hanon, Hervé, “Você vê, eu não me esqueci, A Vida de Ives Montand”, pág. 146, Editora Siciliano, 1993.
(2) Idem, idem, idem, obra cit.


 


 


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