“Ponte dos Espiões”, ecos da Guerra Fria
Baseado em fatos reais, filme do cineasta estadunidense Steve Spielberg reconstrói incidente de espionagem como epopeia do herói hollywoodiano.
Publicado 19/11/2015 18:48
A considerar o tratamento dado pelo cineasta estadunidense Steve Spielberg (Munique, 2005) ao incidente Abel/Powers, a Guerra Fria deixou cinzas. Elas são espargidas nos EUA, na Alemanha Oriental e na União Soviética através deste “Ponte dos Espiões”, para supostamente atestar a “supremacia do capitalismo sobre o socialismo”. Tal manipulação não esconde suas intenções e de seus roteiristas Matt Charman e os Irmãos Ethan e Joel Cohen (Fargo, 1996), de torná-la visível para o espectador.
O ponto de partida desse imbróglio é a prisão do soviético Rudolf Ivanovich Abel, codinome do coronel da KGB, Vilian Guénrijovich Fischer (Mark Rylance), pela CIA, em Nova York, no início dos anos 60. Para defendê-lo da acusação de espionagem, o Tribunal indica o advogado James Donovan (Tom Hanks), especialista em seguros. Defensor da Constituição e do sistema judiciário estadunidense, ele se vale deles para armar a defesa de Abel e destacar a “supremacia” dos EUA.
Em torno dele, Spielberg e seus roteiristas criam a metáfora do cidadão comum, capaz de se imbuir de patriotismo e energia para defender seu sistema de vida. Entretanto, o figurino não lhe cabe. De alta classe média, sócio de escritório de advocacia, morador de bela mansão, ao montar sua estratégia de defesa de Abel, entra em confronto com as reacionárias intenções do juiz Earl Warren (Edward James Hyland). O que beneficia o acusado e permite uma relação de mutua confiança entre eles.
EUA julgam Abel, enquanto espionam
Se esta é, nas sequências iniciais do filme, a construção da empatia do personagem (Donovan) com o espectador, também abre caminho para a desconstrução da visão positiva dos operadores do Sistema. Enquanto, julga Abel como espião, com apoio dos segmentos conservadores, culpando a União Soviética por “ameaçar a segurança dos EUA”, o Governo John Kennedy (1960/1963) monta um grupo de quatro agentes da CIA para espionar instalações militares e bases de foguetes soviéticos.
A exemplo da CIA, a agência KGB (Comitê de Segurança do Estado) flagra em Sverdlowsk, na URSS, o capitão Francis Gary Powers (1929/1977), um dos aviadores-espiões, em plena ação, em 01/05/1960. E, além de derrubar seu avião U-2, consegue prendê-lo. Assim, enquanto, julgavam Abel por espionagem, os EUA também espionavam a URSS. Isto permite a Spielberg denunciar as mentiras do Governo Kennedy, numa tentativa de equilibrar suas controversas ideias político-ideológicas defendidas neste “Ponte dos Espiões”.
Mas esta contraditória linha narrativa, principalmente ao usar Donovan para reafirmar a “superioridade” do sistema judiciário estadunidense sobre o soviético, é reforçada quando ele mostra sequências de Abel “tranquilo” em sua cela nos EUA, e de Powers num cubículo molhado, sendo torturado e acordado a todo instante, na URSS. Isto impõe ao espectador diferentes construções destes sistemas, pois ele se vale da força imagética de um filme de suspense, para torná-lo essencialmente político-ideológico.
Spielberg impõe visão dantesca
Esta abordagem é acentuada quando o eixo narrativo é centrado em Donovan, deixando os casos de espionagem em segundo plano. Seu sofisticado escritório, sua mansão e os soturnos tribunais são substituídos por ruas mau-iluminadas, tomadas por gangues e alemães orientais fuzilados ao tentar pular o Muro de Berlim (1961/1989), que dividia as Alemanhas Oriental e Ocidental. E a eficiente fotografia de Janusz Kaminsky em tons sombrios, registra o horror dantesco-maniqueísta de Spielberg.
Não bastasse, inclui uma inconsistente subtrama em que o representante alemão-oriental Vogel (Sebastian Koch) insiste no reconhecimento da Alemanha Oriental, como nação soberana, pelos EUA para ajudar na troca de Abel por Powers. São nuances que agigantam Donovan, pois lhe cabe negociar a troca de Abel por Powers, incluindo, por sua exigência, o estadunidense Frederic Pryor, estudante de economia em Berlim Oriental. Assim, Spielberg transforma o caso dos espiões na epopeia do negociador classe-média.
Com esta caracterização, ele e seus roteiristas retiraram de um tema explosivo toda carga histórica, dando-lhe um toque conservador. Donovan é o herói solitário, individualista, que tudo controla, até a troca dos espiões na ponte Glienicke, em Potsdam, que ligava as duas Alemanhas. Seu sorriso no vagão de trem, após a passageira ver sua foto na primeira página de um jornal, é de triunfo. Isto não bastaria ao cidadão comum, menos interessado na efêmera glória, construída sobre escombros.
Spielberg continua sendo o cineasta do superespectáculo ao estilo anos 50. Constrói dualidades de fácil entendimento para o espectador. E usa a linguagem cinematográfica de forma a realçar suas concepções, envolvendo e conduzindo-o, sem lhe dar chance de pensar, de ver como encadeia as sequências. No desfecho, de puro suspense, prolonga o tempo da ação, num vai-e-vem exasperante, diluindo o tema em si. Isto torna difícil saber onde começa o real e termina a manipulação.
“Ponte dos Espiões” (Bridge of Spies). Drama/Espionagem. EUA.2015. 135 minutos. Música: Thomas Newman. Edição: Michel Klan. Fotografia: Janusz Kaminski. Roteiro: Matt Charman/Joel e Ethan Cohen. Direção: Steve Spielberg. Elenco: Tom Hanks, Mark Rylance, Merab Ninidze.