“Princesas”: O espaço das ruas

Filme do espanhol Fernando Leon de Aranoa mostra uma Espanha cheia de contradições sociais e sem perspectivas para os ex-colonizados que a procuram a fim de realizar seus sonhos

Durante conversa sobre suas desventuras, as prostitutas Caye (Candela Peña) e Zulema (Micaela Nevárez) desfilam uma profusão de sentimentos pisados que mostram as encruzilhadas a que suas vidas chegaram. Cayetana, chamada Caye, é de família classe média espanhola e Zuma uma ilegal dominicana. Cada uma delas a sua maneira enfrenta as ruas, os clientes e a impossibilidade de realizarem seus sonhos. O diretor e roteirista Fernando Leon de Aranoa oscila entre a reflexão sobre o mundo dessas mulheres que ganham a vida em situações muitas vezes sórdidas, como em seu filme “Princesas”, e a esperança de que isto termine um dia. Elas, na verdade, na são princesas, são simples mulheres obrigadas a enfrentar o cotidiano que não lhes apresenta outras alternativas.
         



Zuma espera ganhar o suficiente para regressar à República Dominicana para cuidar do filho de cinco anos. E Caye quer apenas encontrar um companheiro que vá buscá-la à saída do trabalho. Situações comuns à de milhões de mulheres à procura de um liame que as mantenha na superfície da vida. Histórias sobre prostitutas já foram contadas às centenas no cinema, às vezes com pura fantasia, caso de “Noites de Cabíria”, de Fellini, mas nunca de forma tão crua, sem ser deprimente como neste “Princesas”. São muitas as situações em que são mostradas, conquistando ou lutando para manter seus clientes. Caye vive no salão de beleza em frente à praça onde dezenas de imigrantes, das mais diversas nacionalidades, se oferecem aos clientes.


        


Concorrência entre espanholas e imigrantes mostra lado perverso da globalização


        


No salão de  beleza ela e outras prostitutas discutem a concorrência a que são agora obrigadas a enfrentar. As concorrentes surgem no mercado do sexo como corpos cheios de atrativos, uma novidade que atrai os homens que as procuram. E reagem desfiando todo tipo de preconceito contra as negras vindas das ex-colônias que se entregam por preços que variam entre 20 e 15 euros, quando elas, espanholas, não o faz por menos de 30. A companheira de Caye, Caren (Violeta Pérez), elabora variado cardápio de posições e carícias com preços e cotações, criando verdadeira “economia do sexo” à minuta. Ela e outras prostitutas espanholas, com exceção de Caye, se sentem afastadas de um “mercado” que já foi seu. As imigrantes as superam por serem mais desinibidas, despem-se sem pudor e se expõem mais. Elas, espanholas, não conseguem acompanhá-las.


          



Na seqüência que melhor ilustra a disputa entre elas, Caye sai pelo terreno baldio à procura de Zuma que desaparecera em meio a centenas de prostitutas e clientes. A profusão de mulheres de todas as etnias mostra o quanto a globalização penetrou nos poros do continente europeu. Estão ali atraídas pelas possibilidades de dinheiro fácil que depois se revelam uma falácia. Muitas delas foram levadas como escravas para preencher horas de prazer em boates, clubes, casas de shows e depois são abandonadas, sem chances de retorno. Outras, como Zuma, ganham as ruas e praças madrugadas afora para obter alguns euros. Aranoa, ao tratar deste tema, embora de forma superficial, pois seu interesse se concentra na relação entre Caye e Zuma, deixa antever o que aguarda as imigrantes seduzidas pela moeda forte que, na maioria das vezes, lhes escapa. E elas não têm como remediar estas situações porque estão ali clandestinas, escondidas em casas ou apartamentos dos que vivem na Espanha legalmente.


 


          


Racismo predomina nas discussões entre prostitutas espanholas


            


Muitas terminam por se tornar mercadorias. Zuma é obrigada a se submeter a sevicias, violência, de um cliente que lhe prometeu regularizar sua situação e dela abusa sexualmente. Num desses espancamentos, ela encontra Caye e ambas travam, a partir daí, uma amizade que impede que elas sucumbam à pressão de suas famílias e de seus parceiros. Trocam impressões, desnudam-se uma para a outra, com Caye se revelando racista, faceta não ignorada em seu país pelas manifestações publicadas na mídia, inclusive contra jogadores de futebol. Ao ser indagada por Zuma se gostara de seu amigo negro, ela diz que não transaria com ele, devido à pele e ao cheiro. Isto revela toda uma cultura. Zuma vem de um país de influência africana e indígena, estando, portanto, acostumada às relações inter-étnicas. Caye, pelo contrário, ignora sua descendência moura, portanto afro, como o negro que ela repudia. Mas Zuma, em seu silêncio, contesta-a, tentando lhe mostrar que não há diferença alguma entre negros e brancos.
            


Caye, porém, não se deixa influenciar pela amiga.Continua com suas posições, iguais às de suas amigas que ficam à janela do salão de beleza xingando as “concorrentes” imigrantes negras. Aranoa, no entanto, indica que o racismo por mais entranhado que esteja não suporta a realidade das relações inter-étnicas. As prostitutas espanholas, diante dos atrativos físicos das imigrantes, destacam as vantagens estéticas destas. Começa por Zuma, que muda o penteado de Caye e seu número de clientes aumenta. Logo outra, justamente Care, a racista mais declarada do grupo, também se deixa pentear à moda de Zuma. São estas sutilezas que as culturas deixam à mostra quando as etnias entram em choque. E não se pode falar em qual delas é mais forte. Principalmente quando a concorrência fica acirrada.


         



Falta de solidariedade é denunciada pelo diretor Fernando Aranoa


          


Não menos gritante é a forma como as espanholas tratam suas colegas européias. Uma delas, Glória (Llum Barrera), muito doente, é expulsa pelas outras quando busca socorro. A solidariedade é suplantada pela frieza, a desumanidade. Pouco importa se a beleza de Glória foi engolida pela dureza da profissão, no “mercado do sexo”. Contribui para isto a forma como os homens tratam-nas. Eles são brutais iguais ao explorador de Zuma que, ao ser questionado por ela e Caye, a espanca. Há, no entanto, o reverso, Manuel (Luis Callejo), amante de Caye, trata-a com carinho e respeito. As relações são, assim, equilibradas. É o que torna o filme de Aranoa interessante. Ele não carrega nas tintas; o culpado não deve ser encontrado nas relações entre as prostitutas espanholas e em suas companheiras imigrantes, mas na estrutura econômico-social espanhola. Ambas são vítimas do mesmo processo capitalista e Caye vai entendê-lo ao longo do filme, até se posicionar ao lado de Zuma. Sua solidariedade mais do que de companheira de trabalho é de classe, de gênero e de ser humano.
           



Enfim, o principal responsável pela calamidade que em vivem é a burguesia espanhola que as exploram e, de vez em quando, lhes permite andar de limusine pelo descampado cheio de mulheres esperançosas de ter uma vida melhor. Não há como esconder as contradições sociais, flagradas no cotidiano das famílias de imigrantes legais, nas conversas de Caye e a família durante o almoço ou nas ruas e praças ocupadas pelas prostitutas das mais diversas etnias. Mãe, irmão e cunhada de Caye desconhecem a vida dupla levada por ela. Igual realidade vive Zuma, cuja mãe pensa que ela trabalha num bar. Está em jogo ali a imagem, o sonho, a tendência do ser humano de viver suas idiossincrasias a partir de um mundo criado por realidades das quais não consegue escapar. Os mundos de Caye e Zuma não lhes deixam espaço para a fuga, a mudança. Quando Zuma se vê na contingência de enfrentar as conseqüências de seus atos, Caye deixa de lado a esperança de melhorar seu corpo para melhor atrair os clientes para ajudá-la. Surge daí uma solidariedade inusitada. Uma se reconhece na outra e até mesmo a forma de Caye ajudar Zuma é uma forma de redenção.


           



Deus está fora dos sonhos da personagem Cayetana, a Caye


           



Aranoa se vale de várias elipses para atrair o espectador, deixá-lo preencher os espaços que não lhes são explicitados. Torna seu filme de pleno de interesse, embora precisasse estruturar melhor a montagem, coloca-la num ritmo adequado ao tema. Isto, no entanto, não impede de manter seus objetivos. Às vezes o filme vai aos saltos, parece ter terminado, sem, contudo, fazê-lo. Conta para isto com a interpretação homogênea do elenco e a música de Mario Chao e Alfonso de Villalonga, que usam as canções, belos reggs, para narrar os conflitos interiores das personagens. São músicas que acentuam situações, chamam atenção para a vida de Caye e Zuma, duas jovens perdidas num país que não lhes oferece mais do que as ruas. Caye numa conversa amarga com a amiga dominicana lhe diz que teme existir vida para além da morte, pois se for verdade esta seria pior do que a enfrentada por ela naquele momento. Não é para menos, o que lhe é oferecido é quase nada.
         


 


Dá para perceber que se está diante de um filme diferente dos de Alomodóvar, cheio de prostitutas decaídas, hilárias, criativas e absurdamente delirantes. O riso em “Princesas” quando brota é amarelo, quase um ranger de dentes. Reina a solidão, a indiferença, a consciência de que cada um está entregue à sua própria sorte, mesmo que Caye ajude a Zuma reconciliar-se consigo própria. Perde a presença cotidiana da amiga, mas ganha a certeza de que é possível mudar as coisas mesmo num país  onde tudo está à venda, inclusive – ou principalmente – o sexo.


 



“Princesas” (Princesas). Drama. Espanha. 2005. 113 minutos. Direção: Fernando Leon de Aranoa. Elenco: Candela Peña, Micaela Nevárez, Mariana Cordero.



 
(*) Recebeu três prêmios Goya (Melhor Atriz (Candela Pena), Revelação Feminina (Micaela Nevárez) e Melhor Canção Original (“Me Llaman Calle”) e foi selecionado para o Festival Sundance 2006.          

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