Recalcados e ressentidos

O Cine Jardins, em Jardim da Penha, já se tornou uma das referências de bom cinema em nossa cidade. Tive o prazer de assistir recentemente ao instigante filme "A Onda" (Die Welle), dirigido por Dennis Gansel. O filme baseia-se em uma história real, assumida como tal pelo cineasta logo a princípio, cuja versão em romance, escrito por Morton Rhue, virou um best-seller em muitas escolas americanas, sendo adaptado para a TV em 1981.

A ação é exemplar: um professor pretende levar a sua classe a perceber como as pessoas respondem rápido às seduções do autoritarismo, da disciplina e do poder exercido pela sensação de se pertencer a um grupo coeso e uniforme. A questão central é saber se nos tempos atuais alguma ditadura seria capaz de se instaurar depois e apesar de toda a experiência histórica negativa. A aprendizagem segue regras rígidas e necessariamente válidas para todos. A partir de então, o grupo escolhe um nome – A Onda -, um símbolo em forma de tsunami, uma roupa comum e até mesmo um gesto de saudação. Por incrível que pareça, os alunos reagem de maneira positiva àquele amontoado de normas inflexíveis e insanas. Sentem-se mais motivados e fortes. Para surpresa geral, um número cada vez maior de alunos quer se integrar à Onda e os que ousam exercer o raciocínio crítico são intimidados e excluídos. As consequências acabam sendo incontroláveis e devastadoras.

Trata-se num primeiro momento de uma paródia da juventude hitlerista, dos jovens executores da Revolução Cultural chinesa ou dos agrupamentos da juventude stalinista ou fascista. Foi uma época, aliás, em que o Mal erigiu seus líderes máximos e mais eficientes, com o intuito de destruir a humanidade e os valores morais mais elementares. Ditaduras atrozes, apoiadas pela maioria da população em delírio, minaram todos os alicerces da cultura humanista e eliminaram os seus respectivos representantes. Implementou-se então a ideia mais cara aos regimes patéticos e assassinos que mudaram a história da civilização: o extermínio, a eliminação física barata e rápida de todos os possíveis opositores e desafetos do poder.

De qualquer modo fica evidente no filme como as ideologias totalitárias são sedutoras e atraentes. Ao mesmo tempo, percebemos, atônitos, os recalques e os ressentimentos fundamentando comportamentos nefastos e destrutivos. As delações, a mesquinhez de espírito e a vingança cega são aceitas pelo grupo como condutas normais e corretas. Quantas vezes já convivemos com pessoas assim? Pessoas aparentemente íntegras e inofensivas, que tendo uma oportunidade deixam emergir seus recalques e frustrações tornando-se desumanas e cruéis?

Hoje sentimos nojo ao ver o resultado daquela sanha fascista desenfreada que imperou na primeira metade do século XX, mas muitas vezes não refletimos devidamente sobre os impulsos que permitem e possibilitam o surgimento de atrocidades semelhantes em todas as sociedades e em todas as épocas.

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