Rede das Casas de Cultura em Campinas – A evolução do conceito

Marquesa. Empregada doméstica que carrega no primeiro nome um título de nobreza. E eram nobres seus propósitos.

Moradora de um bairro distante do centro de Campinas, o Parque Itajaí, reuniu um grupo de mães e procurou a biblioteca pública com a seguinte proposta: “Queremos um curso para aprender a orientar o uso dos livros por nossos filhos. E queremos livros, também, pois a biblioteca mais próxima fica a 20 quilômetros de nossas casas”.

TC. Apelido de Antonio Carlos Santos da Silva, um Silva entre milhões. Nos anos 1970, fez supletivo e teatro popular no colégio Evolução de Campinas. Músico e militante do movimento negro, nunca esperou pelo que pudesse receber de fora. Compunha suas canções, fazia cartazes em serigrafia, andava (e continua andando) pelas periferias e interior do Brasil, tecendo uma rede de mocambos e plantando mudas de baobá, a árvore africana da memória, que no tempo da escravidão tornou-se a árvore do esquecimento.

Na mesma época em que Marquesa procurou a biblioteca (1990), TC buscou apoio para transformar em Casa de Cultura parte de um armazém desativado da Cobal (Companhia Brasileira de Alimentos), igualmente em um bairro popular de Campinas, a Vila Castelo Branco. Assim começou a rede de 13 Casas de Cultura na cidade. Concebida enquanto espaço comunitário, cada Casa recebia uma pequena biblioteca com 500 livros, treinamento para orientadoras de leitura, um agente comunitário (selecionado na própria comunidade e recebendo um salário mínimo por mês), oficinas artísticas, ingressos gratuitos para espetáculos realizados nos dois teatros municipais e apoio para eventos locais ou integradores de rede, como o Recreio nas Férias. Uma ação simples, nada grandiosa, calcada na realidade e na generosidade de nosso povo. “A solução dos problemas do Brasil virá da escassez… e dos de baixo”, lembra Milton Santos nos seus últimos escritos, deixados como herança ao povo do Brasil.

A maioria das Casas de Cultura nasceu em projetos adaptados, por vezes uma associação de moradores ou casa protótipo em vilas de Cohab, dessas que as pessoas visitam para planejar como serão suas próprias casas depois de prontas, com sala, pequena cozinha, um banheiro e dois quartos. Das 13 Casas, apenas duas dispunham de um pouco mais de estrutura física, com auditório, cinema ou teatro. Mas essa falta não impedia que fossem realizados espetáculos ou montagens mais complexas. A Casa funcionava como espaço de articulação que buscava outros recursos locais, como o pátio de uma escola, auditório comunitário ou salão paroquial. Um programa de baixo custo unitário e grande escala de atendimento, que aproveitava estruturas já existentes e era compartilhado com a sociedade.

Eu era secretário de cultura na época (1990-92). A princípio imaginava que o processo seria irreversível e nada impediria a continuidade das Casas de Cultura com a mudança na gestão municipal. Não foi o que ocorreu. Com a troca de governo houve atraso no pagamento dos agentes comunitários, assim como a desvalorização das iniciativas locais e a desarticulação do Conselho de Gestores. Esse processo de desqualificação levou à perda de protagonismo e, com o tempo, cursos e oficinas culturais foram cortados e a programação ficou irregular e desvinculada das aspirações locais. Os agentes culturais da comunidade foram se desestimulando e as Casas de Cultura deixaram de funcionar regularmente, perdendo público e referências. Perdendo vida. Dentre elas a casa-protótipo que a população do Itajaí havia transformado em Casa de Cultura, o nobre espaço criado por Marquesa.

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