“Rio Congelado”: imagens repetidas
O transporte de “imigrantes ilegais” por duas trabalhadoras estadunidenses, como saída para os impasses de suas vidas, são usados pela diretora Courtney Hunt para mostrar aonde o ser humano pode chegar para atingir seus objetivos.
Publicado 10/04/2009 18:53
As imagens, de repente, podem ser as mesmas. As pessoas se parecem. Os trailers, estacionados à beira da estrada ou em áreas desocupadas transladam impressões do cotidiano. No entanto, os veículos que as mostram são diametralmente opostos e buscam resultados adversos. Um as registra em seus noticiários televisivos, documentando a realidade estadunidense gerada pela derrocada neoliberal. O outro o faz sob o ponto de vista da arte visual. No entanto, a impressão que se tem é de que se trata das mesmas imagens e de idênticas pessoas. Enquanto a TV, sob seu ponto de vista, historia as consequencias da falência da estrutura econômico-financeira dos EUA, o cinema se permite elucidá-la dramaturgicamente com resultados igualmente trágicos. Cada um cumpre seu papel, embora mereçam vários reparos em suas formas e conteúdos. Mas, no fundo, refletem a dura realidade que atinge as camadas médias, e os trabalhadores não só estadunidenses, mas de todo o planeta.
Não é outra a leitura que se pode fazer de “Rio Congelado”, filme da diretora estadunidense Courtney Hunt, com base em seu próprio roteiro. Nele, Ray Eddy (Melissa Leo), mãe de dois filhos, vive em dificuldades depois que o marido a abandonou. Com o mísero salário que recebe da loja de produtos de massa – o famoso R$ 1,99 brasileiro -, ela os sustenta e sonha em comprar um trailer melhor para morar dignamente. A paisagem gelada na fronteira do Canadá contribui para a dimensão de suas contradições, de quarentona, que mal tem tempo de se trocar e correr para o trabalho num velho carro. Às vezes a área onde mora, ladeada pela floresta, mostra-se tão inóspita quanto seu futuro. Ali a vida escoa devagar, entre corridas ao telefone, atendimento aos consumidores e a escassa comida para o desjejum e o almoço dos filhos.
Marcas no rosto de Ray confirmam seus impasses
O clima que pontua a ação em “Rio Congelado” é letárgico, dando a impressão de que nada ali acontece. Há muita lama acumulada pelo caminho, o rio que a câmera de Hunt insiste em desvendar, como se a vida dos personagens dependesse de um lance de sorte ou de uma opção deslocada de sua cruel realidade e, sobretudo, o desamparo. O próprio rosto marcado de rugas e espinhas de Ray contribui para esta descrença, trazendo para o espectador os impasses por ela vividos. Caso da índia Mohawk, Lile Lithewood (Misty Upahm), que sobrevive de subempregos em cassinos, supermercados e lojas de massa. E habita um trailer que mal lhe cabe. Salvo por T.J (Charlie McDermont), filho de Ray, disposto a aprender por si a consertar engenhocas, os impasses se multiplicam. Entretanto, sob esta lúgubre superfície de desamparo, há esperança de que em algum momento esta crueza se transmute em bons eflúvios.
Uma herança dos filmes neorealistas que imbuíam o povo de uma esperança que os fazia ir em frente. Mas também tem muito da cinematografia estadunidense, com seus heróis que enfrentam batalhas hercúleas e triunfam. Hunt se equilibra entre estas duas heranças para construir uma narrativa, até certo ponto, conservadora, estilisticamente, porquanto mantém os planos abertos, para situar os personagens, mas não os deixa soltos, usando os tradicionais planos aproximados, para registrar seus conflitos. Há, porém, ação em seus planos, ao contrário de muitos filmes atuais que usam o corte para, aparentemente, fazer a ação avançar. No fundo, é a falsa simplicidade do cinema hollywoodiano sendo usada por uma produção independente, para não perder a atenção do espectador. Quando Ray se vê na situação de perder a entrada que deu para o novo trailer, Hunt muda o rumo da história, construído uma narrativa vista em inúmeros dramas das décadas de 40 e 50: a do cidadão comum em apuros em tempos de crise.
Personagem ignora onde fica o Paquistão
Usa para isto uma situação real, inúmeras delas ocorrendo neste exato momento em várias áreas da Europa e dos EUA, sem que os personagens se questionem sobre o que estão fazendo. Mesmo que o objetivo de Ray seja o de comprar seu novo trailer e de Lile reaver o filho, levado pelo pai que, também, a abandonou. Elas transitam entre o translado de chineses e paquistaneses ilegais de ambos os lados da fronteira Canadá-EUA e o ganho legal em seus subempregos. Em dado momento, Ray, mostrando o quanto ignora o mapa do planeta, pontuado de países importantes para sua sobrevivência, indaga a Lile onde fica o Paquistão. O alheamento ali não é apenas em relação à condição dos imigrantes se estende ao seu próprio conhecimento dos impasses do outro. E confirma a afirmativa, aliás, sempre repetida, de que os estadunidenses desconhecem línguas estrangeiras e a geografia da Terra.
A ignorância e a insensibilidade de Ray chegam a tal ponto que numa sequencia elucidativa de seu caráter, ela desconfia dos paquistaneses que transporta, contribuindo para a realização de seu sonho. Atira pela janela o que eles tinham de mais querido, pouco se importando lhes se causa sofrimento. Ela os encara apenas como um negócio, pouco se importa com o que acontecerá com aqueles seres vistos por ela como apenas vultos que se ocultam na traseira de seu carro. A questão é que Hunt não contrapõe dialeticamente, ou seja, não opõe um personagem ao outro, uma visão à outra. Lile às vezes quase chega a preencher esta lacuna, porém, está envolvida demais com seus problemas para não ver os imigrantes só como uma forma de ganhar uns dólares a mais. Quando muito, Hunt opõe à travessia das rodovias e do rio congelado, por Ray e Lile em alta velocidade, à figura do policial de fronteira parado, indiferente ao que ocorre naquele veículo.
Diretora usa trama de filmes policiais dos anos 40 e 50
É como se todos fossem indiferentes à vida daqueles seres esperançosos de uma vida melhor no país cuja máquina de propaganda construiu em todo mundo sua imagem como se fosse a “Terra Prometida”. Os imigrantes veem, assim, o meio pelo qual elas, Ray e Lile irão, elas, sim; livrar-se de seus impasses. Não deixa de ser contraditório, uma vez que na vida real, esta estrutura é tão sutil quanto à mostrada por Hunt em seu filme. Elas, Ray e Lile, oscilam; desta forma, entre a insegurança e a ilegalidade, submetendo-se a enormes riscos de vida. A imagem do rio congelado, metáfora para o impasse de suas vidas, se transforma no obstáculo maior, quando elas, enfim, não dão conta de que podem se dar mal. Então, Hunt entra na seara dos filmes policiais dos anos 40 e 50 em que pessoas comuns usam instrumentos fora da lei para atingir seus objetivos e caem em suas próprias armadilhas.
Hunt, então, justifica as ações de seus personagens, sem sutileza alguma. Monta uma sequencia em que o dilema de Ray aparece, não em relação aos imigrantes, mas a si própria e a Lile. O espectador, diante disto, pode ser levado a apoiar a decisão dela. De novo. Uma opção que nada reflete, senão o individualismo da própria Ray interpretado com galhardia pela desconhecida Melinda Leo. É como se o translado do imigrante implicasse tão só questões de legalidade e não engendrasse todo um comprometimento social, político e econômico. Principalmente em se tratando do cenário onde se passa a ação: a reserva indígena Mohawk, que ultrapassa os dois lados da fronteira Canadá-EUA. Trata-se, afinal, de vasta área liberada, com leis e costumes próprios, respeitados pelas autoridades de ambos os países. Um ponto cego, portanto, usado pela estrutura de transporte de imigrantes de toda natureza. O espectador pode imaginar ações de outra natureza nas reservas indígenas brasileiras, cuja autonomia também é garantida, cabendo as transações internas aos próprios nativos. Mas, dada à sua extensão, é praticamente impossível fiscalizá-las e evitar as mais diversas ações cruzadas.
Filme discute, sem aprofundar, autonomia de áreas indígenas
Hunt, com sua narrativa, passeia sutilmente por estas lacunas, mostrando as autoridades indígenas como um conselho que zela pela segurança e a integridade territorial, moral e econômica da reserva. Este é o único momento em que o filme não esbarra na dramaturgia hollywoodiana. Põe para si um problema real; o da autonomia indígena na época da imigração global, em que as fronteiras são apenas linhas invisíveis. A câmera de Hunt não se detém muito neste impasse – dá voz aos indígenas, mostrando-os capazes que evitar o uso indevido de seu território, mas deixa Ray e Lile com boa desculpa para suas ações. Talvez, “Rio Congelado” seja um daqueles filmes que visto sob o prisma de uma obra de arte tenha contribuído para sobrepor imagens reais às da ficção.
Principalmente no caso específico da mídia que trata dos imigrantes sem mostrar, salvo em raras reportagens especiais, as entranhas da estrutura que os faz transladar de um lado ao outro da fronteira. Os trailers que povoam o imaginário do público que assisti seus noticiários há muito deixaram de ser o emblemático símbolo da contracultura, do morar fora das áreas centrais, para fugir à concentração urbana. Muitas vezes em convívio com a natureza. Hoje é tão só o reflexo de uma fábula mal resolvida. Hunt em seu filme, a traduz num apenas morar, sonhado pelo subproletariado ávido por teto, não por status. É isto justamente que move Ray quando se vale do ganho aparentemente fácil para atender à sua necessidade de morar. Nenhuma redenção obtém, deixa apenas a Hunt a possibilidade de equilibrar sua narrativa, com um final conciliador.
Filme dá impressão de que problema moral foi resolvido
Tais equilíbrios surgem como meras soluções dramaturgicas. Hunt emoldura-os com o falso realismo da ação e dos cenários para trazer para a tela os dilemas dos personagens, a partir de situações buscadas na realidade. Fica-se com a impressão de que o problema legal foi resolvido e, portanto, o real também. O artifício policial e o símbolo do machismo, traduzido pela arma sempre na mão de Ray, no entanto, traem suas intenções. Sem contar, que como sempre acontece nos filmes estadunidenses, a solução vem através do confronto entre segmentos da mesma classe, não contra a estrutura social responsável pelos impasses. Em “Rio Congelado” vem através do tiroteio entre os “gatos”, em confronto por causa de dinheiro. Engenhoso demais, uma vez que o espectador se envolve emocionalmente, torce por Ray, enquanto Hunt falseia a discussão de seu objetivo, nesta altura, mesclado ao problema do imigrante, obscurecido pelo choque entre os “gatos”, entre eles Ray e Lile, que ganham dinheiro nesta cadeia, cujas pontas nem sempre emergem em sua inteireza.
Poder-se-ia dizer que Hunt trafega com seu filme por vários gêneros, indo da discussão sócio-econômica à policial; não é este, porém, o caso. Quando numa das cenas iniciais, Ray empunha o revólver já se pode saber que o maneirismo, o artificialismo holywoodiano já turvou em profundidade a criatividade e o frescor do cinema independente estadunidense. Em outras circunstâncias as soluções fáceis não apareceriam num filme de belas cenas, como em “Rio Congelado”: a de Ray implorando ao corretor imobiliário para lhe dar mais tempo, porque logo teria o dinheiro da prestação do trailer e a de Lile envergonhada em revelar porque não conseguia manter-se nos empregos. Estes dois subtextos do filme revelam mais sobre as razões dos trabalhadores, que, em momentos extremos, acabam se valendo de determinados expedientes, que a conciliação de objetivos embora iguais, mas de resultados diametralmentge opostos.
Enfim, a tipologia holywoodiana e os artifícios de que se vale Hunt em “Rio Congelado” evitam que a contundência do tema que aborda alcance seus objetivos. Alguns vislumbres, no entanto, ficaram gravados no celulóide. E quase o validam como obra de cunho sócio-político. Mas vale principalmente pela bela intervenção de Melissa Leo, como a sofrida Ray, perdida na vastidão da fronteira Canadá-EUA, com seu futuro congelado como o rio que dá nome ao filme. Seu trailer poderia ser um dos mostrados pela TV, em meio à lama e ao gelo. Muitos ocupados por imigrantes das mais diversas latitudes e os próprios estadunidenses em seu momento terceiromundista. E ela, Ray, é parte da paisagem dos que buscam realizar seus sonhos, na terra em que ela sobrevive às duras penas para manter o seu.
“Rio Congelado” (“Frozen River”). Drama. EUA. 2008. 97 minutos. Roteiro/direção: Courtney Hunt. Elenco: Melissa Léo, Misty Upham, Michael O`Keefe, Mark Boone Júnior, Charlie McDermont.