Ser caipira

Intróito: o texto abaixo nasceu da necessidade de responder a um jornalista português, Daniel Silva, onde tentei explicar-lhe sobre o orgulho que tenho de ser caipira e o porquê de escrever textos em caipirês. O texto foi publicado lá na “terrinha” e como foi bem aceito, resolvi repassá-lo aos leitores e amigos do Vermelho. Espero que gostem.

Para responder a contento esta questão, teria que teorizar bastante, valendo-me talvez de teses de cátedra, coisa que nem saberia fazer. Talvez só o mote já pudesse render um livro, que por sinal deveria ser extenso… .

Resumindo em poucas palavras; escrever em caipirês parece-me uma “missão”; algo que tenho que executar para marcar minha passagem pelo planeta.

Por estas bandas, os mais jovens só tecem loas para o estrangeirismo; a situação estável da economia, as atenções para com a Saúde, com a Ecologia e com a Cultura, a ausência de políticos vagabundos em todas as esferas, os lugares lindos para visitar, o dinheiro fácil, a valorização da experiência aliada à formação técnica do indivíduo e etc. Chegam a dizer que o Brasil não tem folclore nem música de qualidade e outras barbaridades. Em verdade, muitos sentem até vergonha de serem brasileiros: isso me entristece muito. É comum ouvir-se por aqui que, caso o Brasil também houvesse sido colonizado por povo não latino, como o foi os Estados Unidos da América seria hoje uma das cinco potências econômicas do mundo. As músicas caipiras de raiz, criada pela nossa gente caipira, é entendida por esse enorme contingente como algo bizarro, de mau gosto e “brega” (nem sei se vocês sabem os significado disso, mas é uma palavra que resume tudo que é antigo, mofado, ultrapassado e de mau gosto).

Eu nasci numa fazenda de café, na região de Ribeirão Preto (estado de São Paulo). Embora meu pai à época, fosse o administrador de uma pequena fazenda [cento e dez alqueires de terra (cada alqueire equivale a 24.000 m² ) e cem mil pés de café – fator que definia sua importância], éramos muito pobres. Vivíamos em dificuldades econômicas constantes, apesar de certa autoridade que papai tinha na região, vivíamos modestamente. Se comida tínhamos a mancheias, o mesmo não se poderia falar de dinheiro. A renda da família tinha que ser incrementada de algum modo, por isso nós, os filhos do administrador, tínhamos que plantar nossas próprias roças de subsistência, como todo mundo que vivia na “colônia” da fazenda, um misto de brasileiros e imigrantes portugueses, espanhóis e italianos. Nós os filhos, dividíamos o tempo entre estudar na escola rural e trabalhar no eito, plantando principalmente arroz e feijão, que são como sabem, a base da alimentação do povo brasileiro até os dias atuais. Durante a colheita de café, também éramos incumbidos de trabalhar , pois o café depois de maduro não poderia esperar “ad eternum”; tinha que ser colhido dentro de um determinado tempo, sob pena de que poderia ser perdida a colheita se assim não fosse. Era praxe colher todo o café da fazenda apenas com os moradores locais pois, via de regra, era a única oportunidade de ganharem um soldo melhor, visto o pagamento ser diferenciado (a maior) nessas ocasiões. Dessa maneira, eu e meus irmãos menores, apanhávamos café, tal e qual os colonos; levantávamos às quatro da manhã e muitas vezes ainda estava escuro quando começávamos a colher o café sobre os panos, que carregávamos aos ombros de um pé de café para o outro, por toda uma fila de trezentos, ou pouco menos, cafeeiros. E assim por diante. Quando o pano já tinha quantidade considerável de café, parávamos para “peneirar” os grãos, separando-os dos gravetos e das folhas, guardando-os em sacos de aniagem que eram pré-demarcados por letra e número, estabelecidos pelo “feitor” da colheita; uma espécie de sargento de ordens do administrador, o qual ainda fiscalizava se deixamos ou não grãos de café nos galhos dos cafeeiros pelos quais já tínhamos passado, se haviam galhos quebrados nos cafeeiros (era proibido bater com paus nos galhos onde estavam os frutos do café, com o fito de colhermos mais depressa) e outros cuidados menores. Ao final do dia, após o toque de uma corneta, tínhamos que parar, peneirar o que ainda houvesse de café nos panos, ensacá-los e prepará-los para medição e anotação dos créditos de cada um dos colhedores.

Em termos de literatura, nado contra a corrente; quais peixes vivos durante a piracema (desova). Afinal, só mesmo peixes mortos seguem a corrente dos rios. Valorizo cada palavra caipira, cada música, cada verso de poema ou música. Um dia vocês, jovens, saberão quem foi Cornélio Pires, Mazzarope, Sebastião Arruda, Moraes Sarmento, Mário de Andrade, Inezita Barroso, Manoel Bandeira, Estelinha Egg, Rolando Boldrin, Muibo Cury, João Pacífico, Nonô Basílio, Nhô Chico, Ado Benatti (ou seu alter ego Zé do Mato), Lulu Benencase, Geraldo Meirelles, Nhá Barbina, Saracura, Penacho, Amadeu Amaral, Villa Lobos, Guimarães Rosa, Euclides da Cunha e etc. Conhecendo-os e à sua obra, entenderão porque sigo o mister de divulgar as coisas do povo que fala uma língua mais que brasileira ou português; a língua caipira. Lembro a todos que as lembranças, os cheiros e as cores que povoam minha mente sexagenária, refletem em alta definição meus anos de meninice, vividos na fazenda de café, no sertão de São Paulo, Brasil.

Lembro o “meu” cachorro de estimação, o “Viajante”, minha árvore preferida, o “faveirinho, ou sicupira”, para a qual eu corria após sofrer alguma decepção, ou bronca dos pais ou até mesmo após levar uma surra; ele, o faveirinho, era meu confidente silencioso. A ele eu confessava meus amores, minhas desilusões e meus sonhos.

Quanto à idéia de escrever o meu primeiro livro, o “Pequeno Dicionário de Caipirês”, lançado em março de 2001(de certa forma ainda inédito, pois nunca consegui uma editora que dispusesse a distribuição do mesmo, sendo, portanto um livro de conhecimento de restrito grupo de pessoas, de certo modo ligados a mim, tais como colegas de trabalho, ex-colegas de escola e faculdade, parentes, amigos e vizinhos), surgiu de brincadeiras que fazia com um colega de trabalho, na empresa de engenharia. Ele, fã incondicional de música caipira e violeiro dos bons, vivia recitando expressões caipiras, com o intuito de querer saber se eu conhecia a tradução correta. Muitos “causos” (fatos reais contados com certa extravagância de fantasia, para torná-la atraente, alegre, bonita e extraordinária; se possível tudo isso junto). Muitos causos, em muitos anos de convivência me influenciaram; passei a listar as expressões e seus significados. Pela primeira vez na vida, no ano de 2000, participei de um concurso de literatura, patrocinado pela Secretaria de Educação e Cultura de São Paulo, o “Mapa Cultural de São Paulo”; cujo fito era mostrar, tal como numa radiografia, onde estavam os escritores que viviam no estado de São Paulo e sobre o quê escreviam. (Tal concurso não se reduzia apenas à Literatura, mas também às artes Plásticas, Pintura, Escultura, Dança: clássica, de rua e jazz, além de Fotografia, Música, Teatro, Desenho de Charges e etc.).

Com um texto, todo escrito em caipirês, venci a “fase local” e fui disputar a fase regional (o estado foi dividido em seis regiões, que mapeavam cerca de trezentos municípios. Só na minha cidade, Taboão da Serra, disputei com cerca de vinte e cinco escritores, nas duas modalidades de literatura: contos e poesias. Os dois primeiros colocados de cada região, disputariam a final), onde infelizmente fui desclassificado, segundo um dos jurados (eram cinco) se meu texto estivesse escrito em Português culto, minha sorte teria sido melhor. Embora chateado com desclassificação, pois entendia eu que, sendo a fala caipira originária das terras paulistas, nada mais “nativo” de São Paulo poderia existir em contraposição ao “caipirês”. Concluí então que minha missão era divulgar este tipo de escrita. Verifiquei que já tinha mais de trezentos verbetes; disse de mim para comigo: – que tal escrever um Dicionário de Caipirês? Pus mãos à obra. O dicionário foi se construindo aos poucos, eu ia anotando as expressões que minha mente trazia e, uma a uma as ia traduzindo (e conferindo) com o amigo caipira. Percorri parte da obra de muitos artistas e escritores que falavam, cantavam ou versavam sobre os caipiras, seus costumes e seu modo peculiar de falar. Afinal, eu próprio sou parte desse povo que fala caipirês. Resolvi que usaria acentuação às palavras caipiras, para dar a entonação correta; assim foi feito. No meu “Pequeno Dicionário de Caipirês”, aparecem pouco mais de setecentos verbetes. Atualizei o livro (ainda inédito) para mais de um mil verbetes. Só falta encontrar quem queira publicá-lo.

Quem tiver alguma cultura clássica, verificará que a grande maioria dos gerúndios e particípios equivalentes de orações, constitui uma tradição centenária e oralmente viva, até os dias atuais.

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Segundo Amadeu Amaral, filólogo e folclorista (06/11/1875 a 24/10/1929), que substituiu Olavo Bilac (nosso poeta parnasianista) na Academia Brasileira de Letras, no distante ano de 1919 e que era autodidata, assim como eu; dedicou-se à dialetologia, estudando cientificamente um dialeto regional caipira, cujo trabalho foi publicado em 1920, com o estudo do linguajar do caipira paulista, analisando suas formas e esmiuçando-lhe sistematicamente o vocabulário. Aqui devo confessar que esta obra, embora eu a tenha procurado, das mais diversas formas, nunca a tenha encontrado. Supõe-se de quê só exista na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, ou em Portugal.

Na obra em aqui citada tem um trecho que diz: “Tivemos, até cerca de vinte e cinco anos atrás, um dialeto bem pronunciado no território da antiga província de São Paulo. É de todo sabido que o nosso falar caipira, bastante característico para ser notado pelos mais desprevenidos como um sistema distinto e inconfundível, que dominava em absoluto a grande maioria da população e estendia a sua influência à própria minoria culta. Mesmo as pessoas educadas e bem falantes, não se podiam esquivar a essa influência. Foi o que criou aos paulistas, há muito tempo, a fama de corromperem o vernáculo com muitos e feios vícios de linguagem. No Senado do Império, se tratou de criar cursos jurídicos no Brasil, sendo São Paulo a sede de um desses cursos, houve senadores que alegaram que o linguajar do povo paulista era inconveniente e iria contaminar os futuros bacharéis oriundos de diferentes circunscrições do país”. Ainda conforme Amadeu Amaral, “o falar paulista reinava sem contraste sensível; o caipirismo não existia apenas na linguagem, mas em todas as manifestações da vida provinciana”.

Ainda conforme Amadeu Amaral, do ponto de vista da fonética, deve-se notar que a prosódia caipira (aqui entendida como na forma lata, que abranja também o ritmo e a musicalidade da linguagem), difere essencialmente da língua portuguesa. O tom geral do frasear é lento, plano e igual, sem as variações e inflexões, com andamentos e outros aspectos que enriquece a expressão das emoções na pronunciação portuguesa. Este fenômeno está estreitamente ligado à lentidão da fala, ou, antes, se resolve num simples aspecto dela, pois a linguagem vagarosa e cantada caracteriza-se justamente por um estiramento mais ou menos excessivo das vogais.

Nesta época de “Reforma Ortográfica da Língua Portuguesa”, dentre outras particularidades, lembro que o falar da gente culta em Portugal, bem como no falar da gente culta no Brasil, existe notório sincretismo no uso dos ditongos “ ou” e “oi”. Para nós, caipiras, quando falamos caipirês este sincretismo não existe: os vocábulos onde estes ditongos aparecem são pronunciados sempre de um só modo, desde os tempos em que Amadeu Amaral fazia a pesquisa até os dias atuais: assim, dizemos lavôra, ôro, estôro, côve, ou lôco e nunca lavoira, oiro, estoiro, etc.; por outro lado; dois, noite, coisa, toicinho, etc. e nunca dous, noute, cousa, toucinho,etc.

– Se existem formas sincréticas, são raríssimas. Talvez isso seja mote para que um filólogo, com erudição e experiência, possa pesquisar. A pesquisa ainda não está terminada; muito ao contrário. A última flor do Lácio, inculta e bela, embevecida, enriquece-se e agradece.

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