Tirem as mãos da previdência!

“O presidente precisa assumir o comando e deixar bem claro para todo mundo entender o recado: ‘Não mexam com a previdência!'”

Fernando Haddad, ministro da Fazenda | Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

O assim chamado “novo arcabouço fiscal” completou 8 meses de vida há poucos dias atrás. A Lei Complementar nº 200 foi promulgada no dia 30 de agosto do ano passado e foi a malandragem maldosa concebida por Fernando Haddad para colocar no lugar do famigerado Teto de Gastos do Temer. Ou seja, ao invés de simplesmente revogar a antiga EC 95, tal como prometido por Lula durante a campanha, o professor do INSPER resolveu fazer mais um agradinho ao núcleo do financismo. Manteve a essência da austeridade fiscal sob uma roupagem mais palatável. Mas o importante era “botar ordem na casa” segundo suas próprias palavras, de maneira que a contenção e os cortes de despesas orçamentárias permaneceram como os componentes básicos da regra número 1 na política econômica.

Os economistas e analistas do campo progressista já alertávamos, desde o início das conversas do Ministro da Fazenda com a fina flor das finanças em nossas terras, que a proposição representava um sério risco para o sucesso político do terceiro mandato de Lula, além de significar um caminho para a continuidade do retrocesso nas políticas públicas e da paralisia no investimento governamental. Dentre os inúmeros problemas apontados na formatação final daquilo que ficou conhecido como o “novo teto do Haddad”, estavam a manutenção do foco na busca de superávit primário e a identificação de redução relativa nas despesas como instrumentos de política fiscal. Um dos pontos de estrangulamento dizia respeito à existência de garantias constitucionais para pisos em saúde, educação e previdência social. Assim, em um horizonte curto, tais itens de gastos passariam a comprimir todos os demais. Enfim, trata-se de uma bomba de feito retardado, mas que começou a apresentar suas consequências antes mesmo do previsto.

Em um tempo mais curto do que uma gravidez, o monstrengo já começa a mostrar as suas garras. Caso o governo insista mesmo em mantê-lo como regra fiscal permanente para atender apenas e exclusivamente aos ditames das elites do financismo, haverá estrangulamento de outras rubricas estratégicas, como Bolsa Família; segurança pública; Forças Armadas; salários de servidores; ciência, tecnologia e inovação; saneamento; cultura; investimentos públicos de forma ampla e geral.

Primeiro saúde e educação. E agora a Previdência.

Dito e feito. Ao longo deste curto período de vigência do novo dispositivo do austericídio, secretários do Ministério da Fazenda e do Planejamento já anunciaram por diversas vezes que o governo deveria encaminhar proposta de emenda constitucional para eliminar os pisos para a saúde e educação. Nenhuma de tais manifestações recebeu negativa por parte dos respectivos superiores. Levando em conta que a sabedoria popular nos ensina que “quem cala, consente”, a conclusão meio óbvia é de que haveria cumplicidade silente de Haddad e Tebet para com tal estratégia.

Pois ao longo dos últimos dias algumas manifestações públicas dos titulares das principais pastas da área econômica vieram no sentido de agravar ainda mais o risco político. Aquilo que era visto apenas como um sonho de uma noite ultraliberal liberal de Paulo Guedes ou uma ideia “jenial” de algum tecnocrata encantado com o financismo, a partir de agora corre o sério risco de receber a chancela oficial do governo. Pelo menos no que depender de tais ministros, a matéria deveria sair dos escaninhos do Palácio do Planalto, atravessar a avenida e ser protocolado na recepção do Congresso Nacional. Uma loucura! É mesmo inimaginável que um governo eleito com tais características políticas e programáticas no campo progressista cumpra com aquilo que nem Temer nem Bolsonaro tiveram a coragem de levar em frente.

Haddad perde toda a vergonha.

Para além da retirada dos pisos de 15% e 18% das receitas tributária para saúde e educação, agora surge explicitamente a intenção de desvincular o piso dos benefícios da previdência social do valor do salário mínimo. Tudo começou no dia 2 de maio, quando Haddad postou em sua conta na rede X (ex twitter) um texto em que dizia, sem nenhuma ressalva, concordar com um artigo que deveria envergonhar onze em cada dez analistas não alinhados com o financismo liberal extremado. O post era o seguinte:

(…) “Recomendo este artigo de Bráulio Borges, economista da FGV, sobre a dinâmica recente das contas públicas.” (…)                                                                                                    

Imaginamos que a agenda de compromissos do titular da pasta esteja bastante comprometida e uma “dica” como esta deva ter sido bem avaliada antes de ser compartilhada. Afinal o profissional citado é bastante conhecido por suas ligações com o universo do sistema financeiro e por suas posições eivadas de conservadorismo econômico. Para além de suas considerações a respeito da dinâmica das finanças governamentais, o artigo de Bráulio caminha no sentido de apresentar proposições.

(…) “deixa claro qual deve ser a principal rubrica que deve ser “atacada” para restaurar o equilíbrio fiscal brasileiro: a previdência, tanto pelo lado da despesa como também pela receita.” (…) (GN)

E na sequência o autor recomendado por Haddad deixa claro como “atacar” para restaurar o equilíbrio fiscal:

(…) “Do lado do gasto com o RGPS, um elemento crucial para conter sua expansão seria a desvinculação do piso previdenciário (e mesmo de outros benefícios assistenciais, como o BPC) do salário-mínimo nacional. O salário-mínimo é uma variável que deve sim ser reajustada ao longo do tempo em termos reais, refletindo ganhos de produtividade da mão de obra, mas é uma variável que deve regular o mercado de trabalho, ou seja, a vida de quem está participando ativamente da produção econômica. As aposentadorias e pensões deveriam ser reajustadas apenas pela inflação, mantendo o poder de compra ao longo do tempo.” (…)

Tebet rasga a fantasia.

Ocorre que alguns dias depois desta espécie de sincericídio cometido por Haddad, sua colega de Esplanada também resolveu por tornar pública sua intenção de avançar na pauta da austeridade e da redução de direitos constitucionais. Simone Tebet havia sido convidada por Lula para ocupar o Ministério do Planejamento e Orçamento, mas vinha mantendo um perfil mais contido nas questões da política econômica. No entanto, em entrevista recente concedida à jornalista Maria Cristina Fernandes do “Valor Econômico”, a ex senadora (MDB-MS) parece retomar a rota até então abandonada do documento “A ponte para o futuro”. Trata- se de um texto oficial de seu partido, que se converteu na orientação central para os 2 anos do governo Temer, após ter patrocinado o golpeachment contra Dilma Roussef.

Tebet optou por rasgar a fantasia e assumir de forma aberta o conservadorismo que tem caracterizado o seu grupo político ao longo dos últimos anos. No que diz respeito especificamente à política fiscal, ela incorpora o discurso de Haddad como se fosse o seu. De acordo com a jornalista,

(…) “No cardápio das propostas discutidas está a desvinculação dos benefícios da Previdência Social da política de valorização do salário mínimo. [Tebet] Duvida, porém, que o país tenha fôlego fiscal para estender indefinidamente a política de valorização aos benefícios previdenciários, ao seguro-desemprego, ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) e ao abono salarial. “Vamos ter que fazer isso pela convicção ou pela dor” (…) (GN)

Como se pode perceber da leitura das manifestações dos responsáveis atuais pela área econômica do governo, algumas das principais conquistas de políticas sociais de nosso País estão sob sério risco de serem eliminadas. Trata-se de garantias previstas na Constituição para direitos de cidadania para saúde, educação e previdência social. Os representantes das elites endinheiradas jamais aceitaram a existência tais mecanismos de redução das desigualdades. Ao mesmo tempo em que nada nunca disseram a respeito dos muitos trilhões desviados do Orçamento para o pagamento das despesas com juros da dívida pública, por outro lado sempre condenaram a “gastança com o rombo” das contas previdenciárias. Afinal, trata-se de quase 40 milhões de pessoas beneficiadas por tais aposentadorias e pensões. Sendo que mais de 60% delas recebem a “fortuna” de 1 salário mínimo por mês. É mesmo muita hipocrisia na boca e na pena dos que reverberam as falas desse pessoal da Faria Lima.

Não mexam com a previdência!

Agora a bola está mesmo com Lula. Se ele assumir a mesma postura que a dupla de ministros fez com seus secretários, aí será uma sinalização, tão triste quanto clara, de que ele estaria de acordo com que seu terceiro mandato entre para História como aquele que mais teria avançado na destruição de direitos sociais. Ele já se manifestou por diversas vezes alertando que a responsabilidade social deve se sobrepor à mera responsabilidade fiscal. É chegada a hora verdade. A tragédia no estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, está demonstrando que os recursos públicos existem. Da mesma forma como aconteceu coma crise da covid 19. Basta pressionar que os recursos aparecem, assim como ocorreu os quase R$ 750 bilhões que foram encaminhados ao pagamento de juros da dívida pública ao longo dos últimos 12 meses. Tudo se resume à vontade política de abandonar a rigidez assassina do austericídio e conceder prioridade àquilo que efetivamente é prioritário.

Lula ainda tem tempo para reconsiderar as opções do neoliberalismo que insistem em tomar conta de seu governo. Mas para isso ele deve sair da posição de mero espectador sentado na plateia, que assite passivamente ao drama que parte de sua própria equipe prepara para ele e para o Brasil. O Presidente precisa assumir o comando e deixar bem claro para todo mundo entender o recado: “Não mexam com a previdência!”

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