"Tudo pode dar certo"

Desconstruindo Nova York

Com humor corrosivo, Woody Allen deixa a Nova York da alta classe média e mergulha numa cidade cheia de contradições e personagens hilariantes

Um Woody Allen mal humorado, que destila bílis num jorro interminável, pode ser apreciado (isso mesmo) neste surpreendente “Tudo Pode Dar Certo”. E, além disso, faz rir, o que é mais inimaginável ainda. Principalmente depois de seu périplo pela Europa, onde se permitiu passear pelos gêneros policial e comédia dramática com resultados desiguais. Em seu último filme, ele se afasta das neuroses da alta classe média novaiorquina e mergulha na cidade real, sem os deslavados amores por Manhattan. Estão ali desde a sem-teto, Melody SaintAnne Celestine (Evan Raquel Wood) ao gay Howard Cummins (Chistopher Evan Welch), sem esquecer seu alter-ego, o  judeu Bóris Yellnikoff (Larry David), que além de personagem que alinha os entrechos comenta os subtextos diretamente para o espectador.

Uma técnica recorrente ao Allen de “Annie Hall”, mais conhecido por “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa”, quando ele comenta as teses de comunicação de Marshall McLuhan, diretamente para o autor de “A Galáxia de Gutenberg”. Então se trata de um Woody Allen do jeito que há muito tempo não se via. Voltou a seu humor corrosivo que faz rir e pensar, colocando o espectador diante da realidade de uma sociedade consumista que expõe seus dogmas e mitos e esconde suas fraquezas e invencionices. A começar pelo próprio Bóris, um mitômano, verborrágico e recalcado, que passa seus dias com os amigos num bar e ensinando xadrez para alunos que trata como imbecis.

Um personagem que logo na abertura se apresenta como alguém da pior espécie e nem por isto o espectador deixa de achá-lo interessante. Numa contradição, portanto, porque ele espelha os habitantes de uma megalópole em que a imagem prepondera. E Boris constrói a sua em cima de ácidas observações, nesgas de seus fracassos com as mulheres e o almejado Prêmio Nobel de Física como professor de Mecânica Quântica.

Personagens representam Nova York submersa

Até o detalhe menos lisonjeiro de que se trata, também, de um acabado suicida, cuja marca trás no andar arrastado. E, ah, ele entrou de vez na terceira idade e não acredita que uma mulher venha a se apaixonar por ele, depois de romper seu casamento com a também professora universitária Jéssica ( Carolyn McCormick). Mas à sua volta estão personagens diferentes dos encontrados nos filmes de Allen, onde inexiste a figura do pobre, do excluído, do negro, pois sua câmera não gira pelas zonas paupérrimas. Há, sim, remediados, imaturos, fracassados, reprimidos, que se juntam a Bóris para que ele traçe um perfil devastador de Nova York, e porque não dos EUA, pós-George Bush.

É através deles que Allen tece suas teorias sobre o que chama o negócio da religião, que “envolve muito dinheiro”, e desnuda os recalques da dona-de-casa Marietta (Patrícia Clarkson). Esta, cheia de pendores religiosos, termina por se revelar oportunista e depois artista liberada – sexualmente inclusive, ao estilo comunidade hippie. Seu marido John Celestine (Ed Begley Jr.), cujo nome já é em si uma gozação, se transforma de radical machista e protestante no parceiro de Howard, dizendo que jamais tinha alcançado igual prazer sexual.

Tem-se, assim, um pouco do que Allen pretende criticar numa sociedade antes permissiva, que entrou com George Bush direto no conservadorismo. Ele desanca este segmento e os que passam a vida a apregoar os valores estadunidenses como a “Terra da Promissão”. Durante uma visita à Estátua da Liberdade com Melody, ela recita poemas sobre a maneira receptiva com que o país acolhe os imigrantes enquanto ele lhe diz que a verdade é outra. Os pobres imigrantes ficavam em quarentena e eram tratados como subraça. Não bastasse isso, os negros que conseguiram ter um representante na Casa Branca nem eram admitidos nos times de basquete onde hoje são predominantes.

Boris trata ser humano como micróbio

Dá para perceber aonde Allen quer chegar: mitos e dogmas são para construir a imagem dos EUA. A verdade subjacente é que nada disso é verdade. Trata-se de deslavada propaganda. Sua acidez não fica, porém, no trato com seu país. Estende-se ao gênero humano, tido por Bóris como “micróbio”. Mais pessimista impossível. Nisto está a grandeza desse “Tudo Pode Dar certo”. É que em meio aos comentários muitas vezes agressivos de Boris estão verdades só ditas pelas pessoas quando estão bêbadas, numa roda de amigos ou quando estão, como ele, Boris, de “saco cheio”.

Allen o faz dizer em alta voz para que o espectador atine para o que acontece à sua volta. Este é, afinal, o papel da arte. Trazer à tona o que as camadas dirigentes conservam submerso. Ao fazer Bóris dizê-lo exerce também o direito ao contraditório e cria uma divertida dialética, pois através de construções inimagináveis os personagens terminam se encontrando. Não é, entretanto, um filme complexo e luxuriante como “Vick Cristina, Barcelona” ou “Manhattan”, mas deliciosamente contundente.

Tudo Pode Dar Certo” (“Whatever Works”). Drama. EUA. 90 minutos. Roteiro/direção: Wood Allen. Elenco: Larry Davis, Evan Raquel Wood, Patrícia Clarkson, Ed Begley Jr., Christopher Evan Welch, Olek Kropa, Henry Cavill.

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