Um filme do passado presente, Madre Joana dos Anjos

A Escola de Cinema de Lodz em “Madre Joana dos Anjos” e o artista plástico Alves Dias

Filme "Madre Joana dos Anjos" | Foto: Divulgação

Esse filme fez muito sucesso nos anos 60, inclusive aqui no Recife. “Madre Joana dos Anjos”, realização do polonês Jerzy Kawalerowicz, de 1961, certamente deu forma à chamada Escola de Cinema de Lodz (Polônia), de onde saiu o muito jovem Roman Polanski que foi aliciado por Hollywood, que depois o condenou e o jogou fora. Mas esse é o mundo do cinema que é uma arte, infelizmente no total dominada pelo dinheiro, apesar de toda a luta de muitos excelentes participantes.

Revi mais uma vez “Madre Joana dos Anjos”, que está em exibição pela Mubi, e dá a oportunidade ao pessoal jovem de conhecer uma criação realizada certamente sem as grandes restrições ideológicas que sempre houve em Hollywood, pois naquela época houve um clima de criatividade na Polónia, e assim “Madre Joana dos Anjos” conseguiu ir ao fundo das questões humanas principais. Não é uma obra que tenha o domínio da ideologia marxista, embora, claro, que é a base do pensamento do cineasta Jerzy Kawalerowicz, mas isso sendo um começo e não uma prisão. Esse filme é o principal dado de que o que havia então na Polónia era uma grande liberdade para criar.

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“Madre Joana dos Anjos”, apesar de ter sido feito há cerca de 60 anos, não demonstra em nenhum aspecto uma deficiência técnica. Todos os seus setores técnicos se mostram de forma tão densa e clara, como se a obra fosse criada com o instrumental existente hoje. Mas isso graças ao senso criativo de Kawalerowicz, e certamente também à sua equipe, pois nos estúdios poloneses da época trabalhavam muitos jovens técnicos que sabiam e tinham como ir buscar a tecnologia melhor para uma estruturação estética.

Sugiro aos professores de cinema que peguem essa produção para dissecar em aulas com seus alunos, pois nela a arte cinematográfica está inteira. Não se perde nada enquanto expressão cinematográfica, e também não se perde nada do ponto de vista de quem quer aproveitar a arte para debater o significado da vida humana. É inclusive triste ver, pelo que mostra “Madre Joana dos Anjos”, que o mundo dos anos 1960 para cá não se desenvolveu do ponto de vista do ser pensante. Tecnologicamente, o mundo já deu muitos saltos, mas ao mesmo tempo tem mostrado uma vontade de atraso na descoberta do Ser. Só interessa à humanidade comer bem e se divertir. Claro que tal interesse não é verdade. O ser humano quer descobrir, mas existem grupos pérfidos que não o deixam. Para que possam continuar essa desumanização e no cinema existente temos disso um espelho.

Olinda, 07. 07. 22

Meu amigo Alves Dias

Há algum tempo que Alves Dias estava praticamente isolado, mas o vi umas últimas vezes aqui em casa na companhia de sua filha Patrícia cineasta e outra vez num aniversário meu, ele vindo com um outro filho. Alves Dias foi um artista fora de mercado praticamente. Ele fazia grande arte e não para vender, mas para impactar. Ele gostava de dizer coisas às pessoas e o pessoal do mercado só quer coisas brilhantes, que brilhem e vendam. Mas por isso mesmo ele certamente ficará em Pernambuco como um dos maiores artistas plásticos, e me vanglorio de ter participado de alguns momentos de sua grande vida. A gente era amigo de vida e fizemos coisas juntas. Éramos amigos de Janiro, um economista da Sudene onde ambos trabalhavam. Uma vez, quando eu namorava com Tereza, nós três alugamos (quem alugou foi Alves Dias) uma casa em Olinda, no lado de baixo do Amparo, e cada um tinha um quarto. Nunca Janiro apareceu com ninguém, e o próprio Alves Dias apareceu uma vez com uma turista estrangeira. Eu era quem mais usava a casa. A nossa amizade era nesse nível. Fizemos também outros tipos de arte, inclusive alguns filmes não terminados, e uma instalação que foi feita no Museu de Arte Contemporânea daqui de Olinda.

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Pedro Índio comentou que Alves Dias era artista plástico, mas tinha alergia as tintas. Existem muitos artistas plásticos que são alérgicos à tinta, e José Cláudio é um deles. Isso tem pouca importância, porque existem maneiras de fugir ao problema. Mas Alves Dias nunca escondeu e gostava mesmo de ser chamado de complicado. Era uma figura complexa. Um dos grandes sonhos de Alves Dias era montar um Museu do Cangaço e juntou muito material numa casa no Jardim Atlântico, mas um dia roubaram quase todos os trabalhos que haviam sido doados pelos artistas. Ele sabia quem tinha sido o ladrão, mas não me lembro bem como resolveu. O trabalho de criação de Alves Dias não aparece mais, porque todos sabemos vivemos numa terra onde a arte ou é comercial ou fica escondida, e só quem sabe dela é o próprio artista.

Tenho centenas de estórias que poderia contar em torno de nossas vidas, mas o que quero mesmo é deixar registrada a minha dor de ter que perder os amigos. Fui amigo de Gina, outra grande artista que me encantava e cuja arte, mesmo sendo dita primitiva, era de uma leveza incomparável. Também de Patrícia, grande cineasta que cria com os desenhos e as imagens e se mudou para o Rio de Janeiro. E lá vai desenvolvendo a sua criação. Enfim, ainda tem Ercila, que também já se foi. Uma família que faz parte da minha vida. Apesar da grande complicação de Alves Dias, com muita leveza. Até.

Olinda, 08. 07. 22

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