“Um homem perdido”: Identidade em reconstrução

Com uma abordagem centrada na falta de sentido da imagem e na tentativa de reconstrução da identidade, a diretora franco-libanesa, Danielle Arbid, trata das mudanças em ocorrência em três importantes países do Oriente Médio.

O fantástico do cinema continua sendo a viagem que se faz a lugares raramente vistos, fora dos cartões postais e dos pseudos documentários televisivos. Melhor ainda se estiver acompanhada de uma história que mescle o inusitado e o enigma, o voyeur e a realização do desejo, a construção de uma nova identidade e o passeio por ambientes tidos como inexistentes. Neste “Um Homem Perdido”, da libanesa Danielle Arbid, radicada na França, há de tudo um pouco, com a condição de que se permita olhar para espaços freqüentados por seres que, embora estejam em busca de prazer, não podem tirar tudo deles. E se o fazem há um quê de perversão, de pecado, quando quem ali está o faz para escapar à mesmice, ao tédio. Em 94 minutos, pode-se descobrir uma faceta desconhecida de países do Oriente Médio, onde homens encontram mulheres em boates e consomem uísque, como se estivessem no Ocidente. O que joga por terra muitos dos mitos sobre o fundamentalismo ou o radical moralismo árabe.


 



                  


Mas se pode dizer também que Jordânia, Síria e Líbano têm muito do Ocidente, com seus jovens de jeans, mulheres sem xador, dirigindo seus automóveis em pleno rush. Há também muito do que se fala, dos estereótipos que se reforçam a cada instante na mídia. Arbid, para montar seus entrechos, se permite perambular por lugares onde eles continuam a se sustentar. Mostra nesgas de ambientes, povoado por aqueles que acham o Ocidente liberal demais. Principalmente, quando o fotógrafo francês Thomas Koré (Melvil Poupaud), insiste em procurar locais freqüentados por mulheres dispostas a se exibir para ele em poses sensuais ou nem tanto. Usa para isto os serviços do enigmático Fouad Saleh (Alexandre Siddig), de quem tenta desvendar o passado. O que importa, para ambos, é refugiar-se em espaços pouco vigiados, onde possam desvendar seus instintos nem sempre condizentes com a moral  do povo que os abrigam.


                 


Imagens não revelam tudo, precisam do real


                 


 


Então, tem-se um filme que expõe a limitação da imagem, pois é disto que trata “Um Homem Perdido”. Ela revela pedaços, nuances, trechos, variáveis que precisam ser reunidos para estruturar o todo. Durante viagem à Jordânia, Koré flagra o desconhecido Saleh num encontro furtivo com uma mulher envolta em trajes negros. Ambos vão parar na delegacia por atentado ao pudor, crime dos mais graves no país. Salvam-se por ser estrangeiros; coisa que o fotógrafo não sabe de Saleh. Tenta tirar dele alguma informação, compreende a dificuldade, dada às negativas e o ar enigmático do homem com o qual passa a viajar. Mas se Saleh é desconhecido para Koré, este também o é para ele. Quanto mais ficam juntos, mais desvendam a personalidade um do outro. Koré gosta de fotografar a esmo, sem focar. Dispara a máquina sem ver o que ela irá registrar, depois vê que se trata de detalhes, instantes em que o flagrado se deixou desvendar. São imagens desfocadas, partes do corpo dobradas, torcidas, sem sensualidade alguma.
                  


 


É isto que faz a arte de Koré. Ao contrário dos fotógrafos que buscam montar o instante, ele prefere tê-lo com todas as fragilidades que um corpo ou o momento revela. Nada é arrumado. Com o inusitado de que faz da mulher seu alvo e, ao mesmo tempo, seu objeto de desejo. Não se contenta em ser um voyeur, de apenas observar o movimento enquanto o registra, faz-se personagem, se intromete na ação. Transforma, desta forma, a modela num objeto real. E leva Souad, uma delas, a lhe dizer que a usou. Ele o faz. É como se entendesse que a imagem apenas não basta; necessário é tocar, usar, possuir. Precisa para isto de ambientes furtivos, camas gastas, luzes e sombras. Sempre os encontra. Sempre arrastando consigo Saleh, desacostumado àquele comportamento, ao qual vai, aos poucos, se entregando, embora a contragosto. Também há nele, Saleh, uma tendência ao furtivo, recatado, cheio de falso pudor, dada à forma como abordou a mulher que com ele viajou da Síria para a Jordânia.      


               


 


Diretora transita pelos temas com sensibilidade
                      
               


 


Arbid, com sensibilidade feminina, consegue transitar de um para o outro, revelando as taras de cada um, sem cair no mau gosto, no pornô puro e simples. “Um Homem Perdido” mostra como sociedades milenares, carregadas de moral, tendo a religião como norteadora dos costumes, descortinam tendências a um tipo de desejo menos escancarado. Porém, conservam a mesma estrutura subterrânea que condenam. Koré pode se movimentar pelo submundo jordaniano, encontrar mulheres que se mostram durante a dança do ventre e vivem de sexo. O corpo também se transforma em mercadoria com o mesmo objetivo que no Ocidente. Arbid o filma com delicadeza, revelando formas avantajadas; nem por isto menos sensuais. Prioriza a imagem ao diálogo, o movimento contínuo não de sua câmera, mas dos personagens,  o que torna a ação mais ágil, bela, misteriosa, instigante.
                 


 


Quando Koré mostra o que flagrou têm-se a idéia de que o exercício que ele faz é para se satisfazer. Depois fica quieto, como se tentasse relaxar. Só não o faz porque Saleh o atrai para seu mundo impenetrável, de quem escapa do meio em que vive. E deixou para trás algo de si que não quer ver desvendado. Então, a imagem feita pela câmera insistente de Koré não dá conta do que ele é. É insuficiente. Existe algo que precisa ser checado. Para além do visto no olhar, no rosto e no andar de Saleh. Thomas (David Hemmings), seu homônimo, em “Blow – Depois Daquele Beijo”, também precisa encontrar o que existe por trás da foto. Tem tão só um rosto em meio à relva. Thomas, de “Um Homem Perdido”, ânsia pelo mesmo. Arbid cria um jogo a exemplo de Antonioni em sua obra-prima. Necessário ter o real, a foto não o é. Trata-se do instante, da representação do real. Para além dele há a realidade, o que se pretende esconder, que foi descoberto meio por acaso. E o Thomas de Arbid vai ao encontro desse real.


                   


 


Saleh procura reconstruir sua identidade em meio à mudança


                  


 


O real também é o espaço, o cenário que se descortina antes do encontro de Thomas com Saleh. A plantação de repolho, a tentativa de Saleh se reconstruir fora de seu meio. Uma tentativa de estruturar uma nova identidade. Uma identidade que não requeira permanecer no mesmo lugar, ainda que possa entender a cultura e falar a mesma língua. Em certo momento, ele diz que não se lembra de nada. Para reconstruir é preciso mesmo não recordar. Pode-se observar a precariedade da vida em Amã, capital da Jordânia, a vasta e verdejante paisagem síria e a beleza arquitetônica de Beirute. Para ele, Saleh, são lugares. Nada mais. Até surgir Thomas com sua câmera. Ela povoa o planeta com imagens, tão incisivamente que todos os lugares são vistos, nenhum conhecido o suficiente. Ainda que se pense que se conhece Nova York mais do que o canto onde se vive. E se percebe que quanto mais se vê, menos se absorve o cheiro, o espaço, a história do lugar. E a paisagem Saleh é um enigma para Thomas.
                 


 


Este mistério irá durar até que ele encontre o ambiente onde se moveu Saleh. O espectro desaparecido num momento de fuga de suas obsessões, escapando de sua insistência em fazê-lo seu modelo em plena ação com uma desconhecida. Vaga de lugar em lugar, indo ao encontro de um passado que se abre para ser visto, checado, ainda que lhe ofereça surpresas. Entende que uma identidade se reconstrói, com outras experiências. Atesta os limites da imagem, desconstrói suas intenções e o leva a confundir as ações de Saleh com as imagens que tem dele e a realidade que o cercava. Arbid joga com estas dualidades ao longo do filme, internalizando as inconstâncias de Thomas, com as tentativas de Saleh de evadir-se de seu ambiente burguês. Pressionado pela mãe, acusado pela mulher, vigiado pelos sobrinhos.  Carece de ser ele mesmo, envergando outras couraças e camadas psíquicas e corporais.


                 


 


Arbid às vezes se perde num esteticismo modernoso


                 


 


Arbid não tem a genialidade e a contundência de Antonioni para ir fundo nas indagações que faz sobre a insuficiência da imagem, o desejo que precisa de objeto para não ser apenas voyeurismo, o moralismo de sociedades milenares que se ocidentalizam, lutando para não ir depressa demais, e, sobretudo, as contradições da perda de identidade, que, no entanto, necessita ser reconstruída.  Às vezes se perde num esteticismo modernoso, de romper o tempo e o espaço, apagando a imagem e mostrando o personagem adiante, para expor seu deslocamento, mudando de seqüência, noutras corta abruptamente, não deixando a imagem decantar. Tudo em prejuízo da complexidade dos personagens, de sua identificação com o ambiente, tão importante em “Um Homem Perdido”. Porque Thomas vai ao submundo não para fotografar simplesmente, está ali por ser aquele seu habitat. 


 


                


 


Idêntica análise se poderia fazer de Saleh confrontado com sua reconstrução. A insinuação termina por se impor, porquanto ele, pelas características físicas de Alexandre Siddig, tem o aspecto de quem está em fuga não de algo, porém de si mesmo.  Faltou aprofundar sua busca, em que ela se apoiava. O que Arbid revela é muito pouco. Em “O Homem Sem Passado”, Aki Kaurismäki consegue dar conta desta aparente contradição, ao mostrar o homem que perde a memória e tenta reconstruir-se visitando os lugares onde teria vivido. Porém, a identidade de Saleh não é interior, centra-se no em torno, na transição do meio em que vive. Todos os países por onde andou, do Líbano, passando pela Síria, à Jordânia, há uma transição. Arbid mostra que ela está em franco movimento. As pessoas que ela mostra na rua, os espigões com traços ocidentais, os jovens de jeans e tênis o atestam. É inegável que algo se perde na inter-influência, retratada. No entanto, Arbid não discute se a influência do Ocidente é boa ou ruim; os homens que Saleh e Thomas encontram num bar de beira de estrada na Jordânia o fazem. Criticam a procura deste último por mulheres a quem possa fotografar. “Aqui não é o Ocidente, vá procura fazer isto na França”, vociferam eles. 
                  


 


 


Então, Arbid com sutileza, indo de um aspecto ao outro, introduz uma discussão não de tudo sem fundamento. A imagem é insuficiente. Pode revelar pela metade, deixar grande parte do real desconhecido. E, no final, se alguém quer apreender a realidade, não deve se levar pelo instante que ela flagra. Caso contrário ficará como Thomas; sem saber, afinal, as razões da fuga de Saleh. A paisagem que se descortina à sua frente em Beirute pode muito bem ser a de Paris, dada à identidade firmada por sua arquitetura. Algo, no entanto, permanece. Não seria demais dizer que se a paisagem muda, pelo menos o cheiro, o ambiente, a língua, as pessoas continuam a ocupar o espaço que reconstroem a cada momento, ainda que sob a forte pressão da perda de identidade. Tanto pela insistência de outro povo, organizado para desestruturá-la, quanto pela negação do que o oprime. Assim, “Um Homem Perdido”, na aparente tentativa de discutir o desejo e a busca de uma nova identidade embute muito mais do que suas imagens revelam.


 


 


“Um Homem Perdido” (“Um Homme Perdu”). Drama. França. 2007. Roteiro/Direção: Danielle Arbid. Elenco: Melvil Poupaud, Alexandre Siddig, Sarah Wade.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor