“Um Método Perigoso”: O patriarca e seu discípulo

Filme do diretor canadense David Cronenberg trata da estruturação da psicanálise e do choque entre dois de seus criadores: Freud e Jung.

Tida pelos psicólogos estadunidenses Melvin H. Marx e William A. Hillix como “mais uma arte, uma filosofia e uma prática do que uma ciência (1)”, a psicanálise continua a suscitar debates.
O choque entre seus principais criadores, o austríaco Sigmund Freud (1856/1939) e o suíço Carl Gustav Jung (1875/1961), é tratada pelo diretor canadense David Cronenberg em “Um Método Perigoso”, como o marco divisor da teoria surgida em 1895, com o livro “Estudos sobre a Histeria”, de Freud e Breuer.

Cronenberg gosta de personagens mórbidos, sadomasoquistas, que mergulham em zonas cinzentas e nelas sucumbem (“Crash – Estranhos Prazeres”). Aqui é a luta de Jung (Michael Fassbender) para controlar seus impulsos sexuais despertados pela paciente russa Sabina Spielrein (Keira Knightley), que sofre de histeria. Ele foge ao contato face a face, sentando-se atrás dela. Mas o desejo sexual, reprimido por ele, só vem à tona quando trata o também psicanalista Otto Gross (Vincent Gross), que não foge ao contato sexual com suas pacientes, e o instiga a fazer o mesmo.

Este embate revela os conflitos interiores de Jung e os limites do terapeuta. Gross, personagem fascinante, liberou-se de qualquer tipo de repressão. Inclusive usa e abusa do “instinto de morte”. Em seu tratamento com Jung, ele mais instiga que se deixa dominar. A relação de Jung com Sabina, após estas sessões, ganha impulso e atinge sua plenitude. Jovem, burguesa, ela torna-se psicanalista, casa-se com um médico russo, mergulha na Revolução Soviética e acaba num campo de concentração alemão. Sua vida daria grande um filme.

É através da relação de Sabina com Jung que Cronenberg desenvolve sua narrativa. Foge dos espaços cinzentos, opressivos, diminutos, comuns neste tipo de filme, para amplos ambientes. Isso se configura nas opções de Jung, que passeia com Sabina por longas escadarias em meio ao bosque, enquanto a analisa e sente-se cada vez mais atraído por ela. Fragilizada, ela vê nele, a um só tempo, seu ponto de apoio e seu objeto de desejo – pura transferência.

O conservador e o acomodado

Esta primeira parte prepara seu encontro com Freud. E delimita o método do que ambos chamam de “a cura pela fala” e mostra o quanto eles são diferentes. Jung, de classe média, casado com a burguesa Emma (Sarah Gadon), vê o paciente como a soma de arquétipos (mitos, símbolos universais, religiões) e a influência do meio onde vive, enquanto Freud centrava sua teoria numa complexa teia de tensões biológicas, sendo a sexual a mais importante. “(…) cada instinto tem uma fonte nas tensões biológicas, uma finalidade de descarga em alguma atividade particular e um objeto que servirá para facilitar a descarga (2)”.

O que antes era admiração recíproca vai, aos poucos, se transformando em animosidade. Jung, mais aberto a experiências, choca-se com a visão centralizadora de Freud. Percebe-o na famosa viagem de navio a Nova York para apresentar a psicanálise aos especialistas estadunidenses. Enquanto ele revela o sonho tido na noite anterior a Freud, então seu analista, este se furta a fazer o mesmo. A relação entre eles azeda ainda mais quando Freud descobre seu caso com Sabina. O austríaco não admitia a relação terapeuta/paciente.

Tudo deveria ficar no campo da “transferência” (paixão do/a paciente pelo/a terapeuta, sem correspondência deste), sem se permitir a contratransferência (caso de o terapeuta apaixonar-se pela/o paciente). Esta descoberta acelera o rompimento entre eles. Jung, que deveria ser o “herdeiro” de Freud, prefere criar seu próprio método psicanalítico. Eles tinham concepções adversas. Freud não acreditava em “curar o doente”, enquanto Jung tinha este objetivo. Não é uma diferença menor.

Baseado no livro “The Talking Cure (“A Cura pela Palavra”), do inglês John Kerr, e na peça homônima de angloeslovaco Christopher Hampton, Cronenberg, sutilmente, mostra que Jung não ousou pôr seu casamento em risco para viver com a ativa Sabina. O encontro desta com sua companheira Emma elucida-o. Freud, acusado de ênfase sexual em sua teoria, é mostrado como o patriarca que dirigia uma confraria, não permitindo releituras do método que lutava para consolidar. Desta forma, Cronenberg não pende para nenhum dos lados, mas todas as críticas a ambos estão na tela.

O filme, no entanto, é de Jung. Ele, com sua visão, tende a espelhar a amplitude da psicanálise, acrescentando-lhe outras variáveis, inclusive as religiões africanas e asiáticas. Freud achava isto absurdo, pois “levava ao misticismo”. John Houston, em “Freud Além da Alma”, trata de suas experiências com o hipnotismo. Muitos podem concordar com Marvin Marx e William Hillix: ”A teoria é vaga e nebulosa, por vezes até autocontraditória (3)”. Ainda hoje, é uma boa polêmica.

“Um Método Perigoso”. (“The Talking Cure”).
Drama. Inglaterra, Irlanda do Norte. 2011. 99 minutos.
Musica: Howard Shore.
Fotografia: Peter Suschitzky.
Roteiro: Christopher Hampton, baseado no livro de John Kerr “The Talking Cure” e em sua peça homônima.
Direção: David Cronenberg.
Elenco: Keira Knightley, Viggo Mortensen, Michael Fassbender, Vicente Cassel, Sarah Gabon.

(1) Marx, Melvin H.; Hillix, William A., Sistemas e Teorias em Psicologia, Cultrix, 1978, pág. 363;
(2) Idem, idem, iidem, pág. 328;
(3) Idem, idem, idem, pág. 363.

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