Uma escravidão portuguesa, com certeza

É raro, ou melhor, jamais foi visto um país de passado colonial, de exploração secular e assassinatos escravistas contra os povos, vir a público e declarar que cometeu grande vileza contra pessoas e para isso não bastam desculpas

Imagem: Jean-Baptiste Debret

O subtítulo deste artigo deveria ser o de minisséries: “baseado em história real”. Então vamos à realidade.

Nesta semana, houve uma declaração histórica do presidente de Portugal Marcelo Rebelo de Sousa. Ele afirmou que o seu país é responsável por crimes realizados durante o período da escravidão transatlântica e da era colonial. E que Portugal deve arcar com os custos desses crimes cometidos no passado. “Há ações que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isso”.  

É raro, ou melhor, jamais foi visto um país de passado colonial, de exploração secular e assassinatos escravistas contra os povos, vir a público e declarar que cometeu grande vileza contra pessoas e para isso não bastam desculpas. Se o passado não pode mais ser evitado, ele pode ao menos ser reconhecido como um crime que não pode ser perdoado. Quando nada, devemos olhar para trás e ver o quanto ideólogos, escritores e políticos tentaram pôr máscaras sobre a escravidão portuguesa.  Diziam-na mais suave, doméstica e domesticável, ou que a culpa, se houvesse (!), seria dividida com os africanos que ganharam bom dinheiro em vender irmãos de humanidade. É preciso reconhecer que tortuoso foi o caminho até a declaração de Marcelo Rebelo de Sousa nesta semana.

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E, no entanto, a verdade já havia se tornado clara no livro magistral de Jacob Gorender, O Escravismo Colonial. Nele, podemos ver e aprender:  

“Os escravos seguiam acorrentados até os portos, onde aguardavam embarque para a América. Os pombeiros (mercadores de escravos) eram brancos, mais frequentemente mulatos, negros livres ou até escravos de confiança. Por sua parte, a Coroa portuguesa mantinha relações de tutoria ou de aliança com numerosos sobas (chefes de tribo africana), que se incumbiam de abastecer a rede de agentes do tráfico ou, em certos casos, de pagar tributo sob a forma de cativos. Assim, por exemplo, Salvador de Sá impôs ao rei do Congo uma contribuição de 9 mil escravos após a retomada de Angola. Eventualmente, os próprios portugueses empreendiam assaltos diretos em busca de prisioneiros, auxiliados pelos guerreiros Jaga, à semelhança dos bandeirantes paulistas que comandavam índios na caça a outros índios…

Os portugueses – registrou Joannes de Laet – têm um rifão que diz: ‘Quem quiser tirar proveito dos seus negros, há de mantê-los, fazê-los trabalhar bem e surrá-los melhor; sem isso não se consegue serviço nem vantagem alguma’. Como se vê, na frase acham-se presentes os três termos da velha fórmula (trabalho, castigo e alimento), com ênfase luso-tropical nos castigos”.

De passagem, observo que o escritor moçambicano Mia Couto, com a sua costumeira ambiguidade, declarou em entrevista à Folha de São Paulo há quase dois anos:

“Os africanos não foram sempre só vítimas, e a aceitação dessa margem de culpa nos dignifica. Porque não nos reduz a objetos na ação de outros. Foi uma história de dominação e genocídio, sim, mas os africanos não foram sempre objetos passivos”.

Sobre isso, escrevi certa vez: dizer que africanos vendiam escravos africanos, e nesse ponto se deter como uma confissão de culpa, é ocultar que esse comércio foi estimulado, criado ou produzido pelos colonizadores portugueses, que acorrentaram homens, mulheres e crianças como bestas e mercadorias na maior migração forçada de povos da história. Pois é impossível não ver que o tráfico de escravos era a máquina azeitada da colonização para o Brasil. O certo é que essas coisas se pronunciam e se pronunciavam como se fossem nada, mas na verdade eram um recurso de retórica que eu diria fraudulento. Negros escravizaram negros, certo? Sim. Mas nada se falar que brancos levaram negros a vender outros negros como escravos, é esconder a exploração cruel dos traficantes de Portugal.

E sobre isso, melhor é voltar a ver a resposta genial de Jacob Gorender em O Escravismo Colonial:

“O tráfico mercantilista iniciado pelos portugueses introduziu um fator externo destrutivo que paralisou ou perverteu a evolução endógena dos povos negros. A princípio, os próprios portugueses assaltavam aldeias inermes e realizavam capturas…. Os prisioneiros eram trocados por panos, ferragens, trigo, sal, cavalos e, sobretudo, por armas de fogo e munições. A estes produtos de origem europeia juntaram-se, com grande aceitação, os procedentes da América: tabaco, aguardente, açúcar, doces e búzios, estes últimos utilizados como moeda pelos africanos. A difusão das armas de fogo tornou sua posse questão de sobrevivência e obrigou uma tribo após outra a tentar obtê-las por meio da captura de homens e mulheres de outras tribos”.

Essa história perversa, que alguns sociólogos e escritores queriam ver sepultada, desta vez foi descoberta por um eminente político, o presidente de Portugal em declaração pública. Diria quase que a história ressurgiu, mas ela jamais esteve morta. “Há ações que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos?” Sim, este é um momento histórico. A grita na direita portuguesa já começou. Vergonha, traição à pátria, berram e urram. Mas a ciência se moveu afinal. Saudemos a coragem de Marcelo Rebelo de Sousa.

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