Uma mulher de mama farta

Semana última, camponeses acamparam na sede do Incra. A avenida Rosa e Silva, Aflitos, é espremida por prédios de luxo. Ninguém se surpreende com as brigadas do MST descendo de ônibus e caminhonetes.

Homens, mulheres e crianças vestem-se como podem; têm o fartum da capoeira. Noutro tempo, com a vinda de pelotões fardados da PM, botins duros no asfalto, cassetetes longos, moradores se punham nas janelas como num anfiteatro romano. Agora, os poucos transeuntes se misturam com os sem-terra na calçada. Dos ônibus, no começo da tarde, escassos olhos comparam suas vidas com as de rostos brotados da terra.

A mulher de cabelos escuros não quis se identificar, inda que tenha instalado uma rede sob o oitizeiro na frente do casarão. Não sabia, ela, que o sobrado fora morada de família aristocrata dos engenhos de Recife. Ao lado do marido, os dois com pouco mais de 25 anos, trepou o filho de dois anos num dos lados da cintura. Dali, se o moleque tivesse tenção de mamar, com uma mão puxaria a teta da mãe; a teta já em riste de tão usada.

-Só me identifico com autorização da direção.

Disse ao repórter, sem medo nem arrogância na voz. Não o olhou de frente porque crescera no trato com gentes iguais a ela, com rudeza esculpida no massapé. Mas falou sem ricto na boca. O que tinha de orgânico, a decisão, digerira-o junto à noção de disciplina. O mesmo sentimento levou-a ao balaústre da porta principal do prédio. Sentara-se ali o superintendente do Incra. O homem distinguia-se pouco do ir e vir dos camponeses; de óculos, calça e camisa de algodão comum e um cigarro fumarento no canto da boca.

Deu a entender, ela, que já o conhecia:

– Agora tá pior. O promotor e o oficial de justiça, junto com a polícia, derrubaram os roçados de inhame, de macaxeira, de milho. Faz oito dias que nós fomos despejados, depois de 14 anos no acampamento.

– Onde vocês estão?

Quis saber o superintendente.

– Nós fomos pro acampamento Xixaim, em Vitória de Santo Antão. Mas lá já tem 50 famílias.

Deu conta do número sem alarme na voz. Até ali, o filho não dera sinais de fome; se o desse, a mãe não hesitaria em mostrar a teta ainda farta sob a pouca chita da blusa.

– E quantos vocês são?

O superintendente, experiente negociador com o MST, falara pouco. Com a pergunta, deu mostra de interesse. Ela enxergou a chance de forçá-lo a uma decisão, ou de deixá-lo preocupado com o desmonte do acampamento do Engenho Pimentel.

– Nós somos 40 famílias, Abelardo!

Pronunciou o nome do superintendente sem cerimônia, com a pouca liberdade que a expulsão da terra lhe deixara.

Às 14h, Abelardo Sandes subiu para ouvir os reclamos dos sem-terra. Os camponeses tinham como certa a demora das conversas. Ergueram plásticos escuros a modo de barracas. Colchões de espuma se espalharam sob o pretume dos abrigos. Duas horas depois, trempes com achas em chama ardiam sob panelões de fubá, de cuscuz, de macaxeira. O cheiro de comida espalhou-se. A mulher de cabelos escuros pôs a teta para fora, o filho mamou.

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