Uma simples vida de cão

De cachorro abundam bons exemplos de gestos virtuosos. Alguns deles de causar inveja aos humanos presunçosos de suas qualidades. Sempre gostei de bichos e posso dizer que conto com certa simpatia por parte deles. Cães, gatos, pássaros. – sempre me dei bem com eles – e também nunca procurei desmerecer sua amizade. Tenho saudades de algum deles, como o Rex. Naquele tempo os cães eram chamados de Tupi, Leão, Gigante – mesmo que fosse um pinscher-, Bolinha, Truvisca ou Baleia. Agora têm nomes de astros do cinema, do esporte ou da Política. Já conheci cachorro com nome de Bush, Gisele, Xuxa, Madona, Lady Di, e por aí vai… O nome do meu era Rex. Nunca chegou a ser bem meu. Explico. Já desfrutei das glórias e dos purgatórios de ser chacareiro de fim de semana. O leitor sabe do que estou falando. Na minha chácara havia um companheiro vindo dos sertões da Bahia. Vivia sozinho. Não se envolvia com mulher ou vizinho. Ia pouco à cidade. Para dar conforto à sua solidão, consegui um cãozinho na cidade. Já era bem crescido, de raça indefinida, para não dizer completo vira-lata. Nos primeiros seis meses de sua vida fora isolado em um recanto de muro. De vez em quando uma sobra de comida. Bebia de uma torneira estragada que vivia pingando. Foi assim que o encontrei e meti no porta-malas do Fiat, onde viajou tremendo e ganindo até o meu “latifúndio”. Logo que abri a porta do baú do veículo, saltou feito louco e desapareceu. Passou dias pelas redondezas, até que a fome e o desamparo o fizeram aproximar de meu solitário administrador. Deram-se bem. Ia buscar comida, desconfiado, à distância, depois se postava na estrada que dava para a saída, assustado. Foi amansando. Já latia à porta e abanava o rabo. Temia chuva e trovoada. Aí, se metia casa adentro, embarafustava nas pernas da gente e enfiava a cabeça onde podia, fosse balde, caixote ou cama. Aproveitava esses momentos de debilidade atmosférica dele para aplicar-lhe vermífugos, vacinas e antiparasitos. Mas o Rex tinha uma virtude. Tinha dentro dele um calendário que marcava os fins de semana. Aprendera a esperar na porteira minha chegada. Era só dar sábado e se acomodava sobre um leirão, na entrada da chácara, esperando. Nunca decifrei aquela forma de conhecimento. O certo é que, com sol ou chuva, era a primeira figura que avistava. Esse costume durou vários anos, como durou sua vidinha arisca e a minha paciência de proprietário rural. A vida do Rex não teve nenhum glamour. Sempre foi um cão sem prestígio, humilde. Foi seu jeito de viver. E de morrer. Certo sábado, ao entrar pela porteira, notei que o Rex não estava, como de seu costume, sobre o leirão. Olhei ao redor e logo divisei seu corpinho estirado como se dormisse. Aproximei-me e vi que estava morto. Morreu ali em sua atalaia, conforme seu calendário. Não adoeceu. Apenas envelheceu modestamente até aquele momento. Não sei por que estou falando do Rex. Nem era um cachorro de raça. Era até uma coisa esquiva, mas tinha uma certa alegria. O Rex era só um cachorro. Não possuía o dom humano da tristeza.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor