“Ventos da Liberdade”: Lições políticas

Diretor inglês Ken Loach retoma a discussão sobre o colonialismo inglês mostrando as lutas de libertação  na Irlanda do Norte, na década de 20, a partir das visões de dois irmãos que pertenciam ao IRA (Exército Republicano Irlandês)


 

Numa época em que os filmes nitidamente políticos são uma raridade, o inglês Ken Loach continua a refletir sobre grandes temas, a partir das ações que motivam as lutas sociais contemporâneas. Suas preocupações vão da exploração da mão-de-obra dos imigrantes mexicanos nos Estados Unidos, em “Pão e Rosas”, à luta dos irlandeses contra o colonialismo inglês em “Ventos da Liberdade”, Palma de Ouro no Festival de Cannes, de 2006. Tem sempre um olhar crítico, direto, sobre as políticas adotadas pelos países do 1º Mundo e a forma como  são aplicadas nas nações dependentes. Um tema explosivo quando se trata da federação integrada pela Irlanda do Norte, Irlanda, País de Gales e Escócia: a Grã-Bretanha. Todos eles, à sua maneira, lutam para se tornar independentes. Em seu último filme ele trata justamente dos primórdios da formação do IRA (Exército Republicano Irlandês), braço armado do Sin Fein, o partido dos católicos irlandeses,  e os combates travados com as tropas de ocupação da Irlanda do Norte nos anos 20.
                



O cinema sempre tratou a guerra civil irlandesa de uma forma romântica, como o fez David Lean em “A Filha de Ryan”. A encenação é grandiosa, motivada pela paixão de Sarah Milles, mulher do professor Robert Mitchum, pelo oficial inglês Christopher Jones. E, no meio, a ação dos guerrilheiros contra os ingleses. O que sobressai aqui é a relação amorosa, tendo como pano de fundo o entrecho político. Também grandiosa foi a abordagem de Neil Jordan em seu “Michael Collins”, que trata do mesmo tema de Loach em “Ventos da Liberdade”, mas centra a ação no líder do Sin Fein. Loach preferiu deixar os mitos de fora e mostrou a resistência à ocupação inglesa, a partir dos guerrilheiros saídos do meio do povo, dos camponeses, de intelectuais e proletários.


          



Encenação do diretor é seca e direta


              



Nada de espetaculoso, de cenas grandiosas, há em seu “Ventos da Liberdade”. O roteiro de Paul Laverty é econômico e sua encenação é seca, às vezes crua, contribuindo em muito para a compreensão das motivações dos personagens. Os cenários são áridos: casas de pedra e barro cobertas por sapé, estradas desertas, mato verde, em tons sombrios, que ressaltam, assim, a ação dos guerrilheiros diante da brutalidade das tropas inglesas. Inexiste preparação das seqüências, envolvendo ao longo da história o espectador. O que a faz avançar são os confrontos com as tropas inglesas e as contradições e divisões no seio dos próprios guerrilheiros. Os recursos usados para isto são poucos, uma e outra cena em que as imagens do diretor de fotografia Barry Ackroyd deixam ver mais que o conflito. Numa delas, de grande beleza, os jovens guerrilheiros surgem entre a cerração como fantasmas que se materializam para combater o invasor. Porém, este é o único momento em que se percebe a mão do diretor; a câmara de Loach não se move e seu cinema é clássico, com enquadramentos precisos, mas sem ousadias de linguagem. É como se ele não quisesse desviar a atenção do espectador para o que lhe é mais importante.
         



O que conta em seu cinema é mesmo o conteúdo. Em “Ventos da Liberdade” são os jovens que se envolvem com a luta armada, depois da execução de um dos seus. A consciência da necessidade de enfrentar o invasor vem da dor, do sangue inocente derramado, da violência das tropas inglesas, não apenas das contradições ditadas pela  exploração pura e simples. Estas poderiam ser matizadas, pois estão presentes no filme todos os componentes que as caracterizam. Ou seja, há o latifundiário, aliado dos opressores, as tropas inglesas que controlam território e movimentos da população irlandesa e a ausência de diálogo entre as duas nações. Seria fácil para a dupla Loach/Laverty lançar mão deste expediente. Eles preferiram trabalhar com outro registro: o das contradições entre os irmãos Demian Carey (Cillian Murphy), médico recém-formado, e seu irmão Teddy Donovan (Padraic Delaney). São as disputas entre eles que mostram as contradições das forças que se opõem ao colonialismo inglês.


 



         



Irmãos seguem caminhos opostos


         



Damien é o intelectual que, uma vez na luta, absorve logo as regras do combate: não há sentimentalismo, idealismo ou fraqueza. Não hesita quando tem de executar um delator, mesmo que seja alguém de suas relações. É frio o suficiente para fazê-lo, sem pensar inclusive nas conseqüências para sua relação com a amada Sinead (Orla Fitzgerald). Teddy, o militar, reflete mais sobre as ações. É mais político, raciocina a partir de uma realidade ditada pela correlação de forças. Ao contrário de Demian que prefere levar seus atos às últimas conseqüências. Estas duas personalidades irão se chocar quando Michael Collins, o líder do Sin Fein, faz o célebre acordo de autonomia da Irlanda do Norte com a Inglaterra e gera a divisão do movimento de resistência. Demian irá tomar um caminho e seu irmão Teddy outro.
          



Esta dualidade serve para Loach mostrar como se formam as dissensões e as facções num mesmo movimento. Teddy irá integrar as forças “legalistas” que controlarão a Irlanda do Norte, para cumprir o acordo feito pela direção do partido com a Inglaterra. Demian prefere continuar a resistência até a independência total do país. Loach não toma partido, dirige o filme sem esquematismo ou maniqueísmo. Teddy aceita que a Irlanda do Norte, mesmo com autonomia limitada, siga sob o comando britânico. Fato que continua ditar a política irlandesa nos dias atuais; como mostra o acordo de compartilhamento do poder entre protestantes e católicos, firmado segunda-feira, dia sete de maio de 2007, sob a liderança do primeiro-ministro Tony Blair.
            



É a vitória do pragmatismo sobre os que persistem na luta contra o colonialismo inglês que adquiriu outras características, mas que continua a negar a soberania total aos países que integram a Grã-Bretanha. Nos anos 20, os “legalistas” substituíram as forças de ocupação, inclusive no uso da violência, para evitar a continuidade da luta. Esta foi sufocada temporariamente. Retornou ao longo dos anos e permanece até hoje, de acordo com a correlação de forças em cada país que se encontra sob o domínio inglês.


           



Filmes mostra tendência dos movimentos em optar pelo centro


          


As cenas que configuram a tendência de certos movimentos políticos de optar pelo centro nos tempos atuais, é bem focalizada por Loach. É a contemporização, a acomodação de interesses, em prejuízo da busca da independência que ponha termo à ocupação de um país pelo outro e a liberdade de um povo em encontrar saídas mais profundas para seus problemas. Demien demonstra isto ao não aceitar o acordo e as regras impostas pelo irmão Teddy. O confronto entre ambos torna-se agudo, radical, eles não são mais irmãos, com idéias semelhantes sobre a libertação de seu país, mas inimigos. Cada um deles pertence a uma facção com visões diferentes sobre esse processo.
         



 A forma seca e direta com que Loach conduz este confronto coloca para o espectador o desafio de entender às duas motivações. É chocante como elas – as motivações – se desenvolvem e chegam ao desfecho. É como se Loach indagasse se temos consciência do risco que é optar pela radicalização ou pela conciliação, e que, mesmo ao adotarmos uma ou outra trilha, não afastamos a possibilidade de um impasse. E que este poderá levar à eliminação de um dos contundentes, dada à necessidade de se fazer cumprir o estabelecido, ainda que uma delas veja claramente para onde ele leva a vida do povo.


 


         
Loach deixa que o público tome posição


 


         
Não é fácil chegar a esta conclusão, depende da tendência político-ideológica de cada espectador. A questão é que Loach ainda que não tome posição, denuncia a continuidade do colonialismo inglês, que sobrevive na época do imperialismo, do neoliberalismo e da globalização. Ocupa outros países, que gozam de autonomia, inclusive financeira e política, mas não podem deixar de pertencer, como países soberanos, a Grã-Bretanha. Serve para pôr pedras na gestão de Tony Blair, que nada fez para mudar as relações entre as já citadas nações e a Inglaterra. Manteve, desta forma, a política de fazer acordos para lhes conceder autonomia, como faziam seus antecessores conservadores ou não. Obedece à política real de não permitir cisão em seu império, embora ele já esteja por demais limitado e submetido aos interesses norte-americanos. Os povos subjugados há milênios, porém, continuam a ter outra visão desse processo.



        



Numa das cenas finais de “Ventos da Liberdade”, Sinead o confirma. A conciliação depois de manter tantas feridas abertas é uma impossibilidade. Ambos os lados cometeram erros e violência demais para apenas contar os mortos. Enterrá-los certamente não irá apagar as imagens que ficaram deles. Restará uma frieza e um distanciamento difícil de ser superado. Loach atesta-o claramente. Deixa de lado o uso de música que destaque sentimentos e marque a passagem de uma nuance a outra. Ela só é ouvida na abertura do filme e em canções que narram o sofrimento e a esperança das famílias que perderam seus entes queridos. E está ausente quando dos confrontos mais agudos e no desfecho do filme, de uma brutalidade e frieza, que termina em lágrimas, logo contidas. Sem dúvida Loach não quis manipular o espectador, para que este não deixasse de refletir sobre o que lhe é mostrado num filme que se destaca em meio à pasmaceira e a alienação predominante no momento histórico em que vivemos.


 



“Ventos da Liberdade”(The Wind That Shakes The Barley). Drama. Reino Unido, 2006, 127 minutos. Direção: Ken Loach. Roteiro: Paul Laverty. Elenco: Cillian Murphy, Padraic Delaney e Orla Fitzgerald.

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