Viva liberar-se. Líber Arce vive!

Há quarenta anos, em um 14 de agosto, era assassinado, pelas forças repressivas uruguaias, o líder da Federação Estudantil Universitária do Uruguai (FEUU) e dirigente da União de Jovens Comunistas (UJC) desse país, Líber Arce. Foi o primeiro de uma extens

Render homenagem a esse ícone do movimento estudantil latino-americano pela passagem dos quarenta anos do seu desaparecimento é também reconhecer publicamente os papéis históricos desempenhados pela UJC em prol da democracia e do socialismo e da FEUU, entidade irmã da União Nacional dos Estudantes do Brasil, que com oito décadas de existência permanece sempre jovem na defesa permanente da educação pública nesse país que ostenta uma das menores taxas de analfabetismo do continente.


 


 


Arce tinha 28 anos quando morreu. Era estudante de arquitetura e para poder seguir com sua profissão havia ingressado na escola de prótese dental da Faculdade de Odontologia. Ainda trabalhava com seus pais em uma feira de frutas e verduras e desde os 19 anos militava na UJC. Com a chegada ao poder do presidente Jorge Pacheco Areco, do partido Colorado, ousou enfrentar o recrudescimento da escalada ditatorial no Uruguai que desafortunadamente iria se arrastar até os anos oitenta, levando consigo milhares de vidas.


 


 


 Inaugurando uma extensa lista de mártires estudantis, o assassinato de Líber Arce marca o início de uma série de execuções que mancharia para sempre a história política do país cisplatino, seguido de outras mortes como as de Hugo de los Santos e Susana Pintos, também militantes da UJC, que tombaram um mês depois pelas mãos dos esbirros da polícia local. A ofensiva continuou e outros líderes estudantis foram sendo abatidos. Segue essa funesta lista nomes de líderes estudantis como Heber Nieto, que também sucumbiu em setembro desse mesmo ano; Rodríguez Muela em 1970; Íbero Gutiérrez (militante da FEUU morto pelos esquadrões da morte), Julio Spósito, Joaquín Kluber e Jorge Salerno (estudante de agronomia e militante do MLN) em 1972; Ramón Peré (estudante de veterinária e militante da UJC e da FEUU) e Walter Medina (estudante secundarista e membro da Juventude Socialista) morto enquanto pintava um muro em 1973, e a jovem Nibia Sabalsagaray, também integrante da FEUU e militante da UJC.


 



 
Todos esses abnegados lutadores merecem um local de destaque na história do movimento estudantil latino-americano e do próprio Uruguai. É como narra uma canção popular uruguaia que diz: “A morte de um estudante é uma baixa e não é / porque por cada um que morre outro estar por nascer”. Doaram suas vidas como contribuição à derrocada da ditadura uruguaia e abriram portas para que hoje pudéssemos avançar na integração latino-americana com um governo de feição progressista e democrática tal como é o Frente Ampla, liderado pelo atual presidente Tabaré Vásquez.


 


 


Em 1968, o então presidente Jorge Pacheco, ex-boxeador, nocauteou a democracia no Uruguai e inaugurou um período que ficou conhecido como pachequismo, caracterizado pela truculência, caça aos militantes dos movimentos sociais, ilegalização dos partidos de esquerda e, sobretudo, pela preparação do terreno para a implantação de uma das mais sangrentas ditaduras que nosso continente presenciou, oficialmente instalada entre 1973 a 1985.


 


 


Pacheco assumiu a presidência em dezembro de 1967 já dando pistas do que seria seu governo. Por decreto fecha o jornal Época e o semanário socialista “O sol”. Também dissolveu e pôs na ilegalidade o Partido Socialista, a Federação Anarquista Uruguaia, o Movimento Revolucionário Oriental, o Movimento de Ação Popular Uruguaio e o Movimento de Esquerda Revolucionária. Em junho do ano seguinte (1968) o governo decretou medidas de segurança que nada mais eram que subterfúgios para legitimar suas ações repressivas. A partir de então, a censura e o fechamento de jornais passaram a ser freqüentes.


 


 


Essa repressão foi particularmente dura contra as entidades emblemáticas da resistência: as organizações estudantis (FEUU e FES – Federação Estudantil Secundarista) e a Convenção Nacional dos Trabalhadores – CNT.


 


 


No enfrentamento a essa nebulosa escalada autoritária, milhares de estudantes, como Líber Arce, se posicionaram na linha de frente, formando a resistência ao arbítrio que era apoiado diretamente pelos Estados Unidos. Junto com os trabalhadores ganhavam as ruas com o legendário canto “obreros y estudiantes, unidos y adelante” que contagiava a população. Numa dessas manifestações de cunho pacífico o jovem Arce caiu baleado e teve seu socorro dificultado pela mesma polícia que havia disparado pelas suas costas.


 


 


Foi em pleno meio dia de 14 de agosto de 1968 – ano das grandes manifestações estudantis que sacudiram todo o mundo e que no Uruguai tiveram um caráter mais politizado -, que caiu em ação Líber Arce. Participava de uma manifestação em Montevidéu, em uma rua que hoje leva o seu nome, junto a um grupo de estudantes de odontologia, enfermagem e veterinária. Segundo diversas testemunhas (inclusive da imprensa oficial da época) o grupo de estudantes foi violentamente abordado por uma saraivada de balas disparada ao esmo, sendo a que atingiu Líber, desfechada a quatro metros de distância.


 


 


No dia do enterro seu corpo foi carregado até a Universidade da República acompanhado por mais de 200 mil pessoas. Durante todo o trajeto os comerciantes fechavam as portas em sinal de respeito e solidariedade à luta de Líber. Na faculdade de odontologia foi posto um enorme cartaz como os seguintes dizeres: “Odontologia em luta te rende homenagens”. O funeral é lembrado como uma das maiores demonstrações de comoção do povo uruguaio e desde então, e mesmo durante a ditadura militar, não houve um ano sequer que o movimento estudantil deixasse de homenagear Líber Arce no dia em que assumiu como data de todos os mártires estudantis.


 


 


Ainda pouco conhecemos da heróica resistência travada pelos irmãos uruguaios em defesa da liberdade e da democracia tendo o movimento estudantil como a infantaria mais destacada. Uma ditadura feroz que promoveu um dos maiores êxodos populacional do continente. Os que ousaram lutar pagaram caro. Tal como no Brasil é preciso revisitar o passado para tirar aprendizados.  É como disse a senhora Edila Silvia Aguiar, em uma sessão extraordinária da junta departamental de Montevidéu, por ocasião do que foi chamando de comemoração dos 37 anos do primeiro estudante caído: “A memória, ainda que nos doa, é boa; em contrapartida, o esquecimento é ruim, porque oculta a injustiça e a verdade”.


 


 


Das várias coincidências entre nossos países durante a ditadura militar que nos assolou, está que, também aqui, os estudantes lutaram contra o mesmo imperialismo norte-americano que diretamente apoiava aqueles regimes. A Operação Condor, por exemplo, até hoje é tratada como tabu.


 


 


Por isso, nada melhor que liberar-se (palavra que foneticamente soa semelhante à junção do nome e sobrenome de Líber Arce) das velhas amarras que nos impede de reparar os erros cometidos no passado como minimamente faz o Estado brasileiro agora, com a reconstrução da sede da UNE incendiada pelos ditadores brasileiros.


 


 


Evocar o nome de Líber Arce como mártir do movimento estudantil latino-americano é reivindicar sua luta no presente. Em um momento em que a grande mídia semeia o desencanto e a descrença para a juventude, lembramos Violeta Parra ao poetizar que são os estudantes a levedura do pão que está no forno.


 


 


Y que vivan los estudiantes, pues Líber Arce vive.

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