“Wajda”: Sem identidade
Cineasta saudita Haifaa Al-Mansour traça um perfil da condição feminina em seu país a partir das histórias de quatro mulheres de Riad
Publicado 29/05/2013 12:35
Muitos cineastas escondem seu estilo ao escolher seus ângulos de câmera. Outros nem se preocupam com método, preferem usar o que servir mais à narrativa, a compreensão da história e tornar claro o comportamento dos personagens. A cada filme mudam suas escolhas. Daí existirem os cineastas sem estilo, casos de Howard Hawks (“Rio Vermelho”, 1948, “Scarface” 1932) e William Wyler (“Pérfida” 1941, “O Colecionador”, 1965) E ambos dirigiram grandes filmes.
As intenções da cineasta saudita Haifaa Al-Mansour, primeira mulher a dirigir um filme em seu país, se enquadram nesta opção. Logo na abertura sua câmera em plano fechado passeia pelos sapatos pretos das alunas de uma escola secundária para moças em Riad, capital da Arábia Saudita. E se detém no tênis azul escuro de Wajda (Reem Abdullah), a garota de 12 anos, só focalizada segundos depois. Al-Mansour voltará a demorar-se nela ao mostrar sua calça jeans, o véu a descobrir-lhe parte da face e a altura com que ouve música.
A partir desta sua apresentação, ela, salvo algumas sequências, será vista sempre em planos abertos, em cenários que a individualizam. Ao contrário de sua Mãe (Ahd), empregada de uma universidade, filmada sempre em planos fechados, presa à cozinha, ao sofá, à cama. O mesmo ocorre com as duas colegas de Wajda na escola, Faten e Fátima, vistas sempre de lado, em câmera baixa, como se pertencessem a um mundo proibido. Elas passam as diferentes visões de Al-Mansour sobre o papel da mulher na sociedade saudita.
Wajda é a nova geração saudita
Há flagrante contraste entre Wajda e a Mãe. Ela representa a nova geração, influenciada pelos costumes ocidentais, que busca acesso ao que lhe é proibido por dogmas, crendices ou simples fantasias. Pouco ouvido dá a “crença” de que andar de bicicleta faz perder a virgindade. E o véu para ela é o “costume” que não obtém sua adesão consciente. Enquanto para a Mãe tem outro significado, ao qual respeita. Ela usa o hijab (vestido e véu negros, símbolos da privacidade, modéstia e moralidade islâmica), aceita sua condição de esposa ameaçada e as prolongadas ausências do marido, que a submete à poligamia e ao medo de se transformar em segunda esposa.
Al-Mansour mostra a dualidade entre o que a mulher mostra na rua e o que está sob suas vestes pretas. São mulheres diferentes: uma submissa, oprimida, a outra vestida segundo suas escolhas, que vai ao salão, maquia-se, fuma. A que se vê nas ruas, segundo a diretora não é a mesma vista em casa. A Mãe é esta mulher. As outras duas, Faten e Fátima, jovens, querem desfrutar o prazer de sua idade, mesmo sob o rígido controle da diretora Hussa. Vivem nos telhados e becos da escola, escondidas, às vezes o véu colabora, noutras as denunciam. A completar estas vertentes está Abdullah (Abdullrahaman Al Gorani), o garoto amigo de Wajda, para quem inexistem restrições: o patriarcado e o machismo o beneficiam.
Al-Mansour amarra sua narrativa nestas vertentes, tendo a de Wajda como central. As outras se ligam a ela para reforçá-la. No entanto é uma luta individual, sem configurar uma revolta aberta contra o patriarcado e o Islã. Ela não faz pregações, apenas se vale deste para atingir seu objetivo. E participa da gincana organizada pela escola, com perguntas e respostas sobre o Alcorão. Há em Wajda o respeito por Ele, porém seu objetivo não é religioso. Tem outro significado. E as boas intenções de Hussa com ele conflitam. Entre elas está a bicicleta que dá sentido à narrativa.
Bicicleta é só um símbolo
Al-Mansour usa-a para sintetizar as múltiplas barreiras criadas para oprimir a mulher em seu país. Diferente de Vittorio De Sica no clássico neorrealista “Ladrões de Bicicletas” (1948), que mostra o desespero do pai Antonio Ricci (Lamberto Maggiorani) ao ter a bicicleta roubada. Sem ela perderia o emprego em plena crise econômica italiana. Wajda ao desejá-la não quer apenas liberdade, busca equiparar-se a Abdullah, desmistificar a crença da perda da virgindade, ser aceita em igualdade de condições com os homens.
A complexidade do filme está em valer-se do já usado para abrir nova discussão. Al-Mansour faz Wajda transitar diante da praça e de prédios em construção. Algo novo está para nascer dali, é o espaço onde ela irá desafiar Abdullah e também pedalar pelas ruas e avenidas que a levarão a outra parte de Riad. No entanto como se trata de reação individual, solitária, a sensação de liberdade restringe-se a ela. A Mãe e as colegas Faten e Fátima sofrem as consequências da rigidez religiosa e patriarcal sem protesto algum.
O olhar diferenciado de Al-Mansour está em mostrar a escola como guardiã da religião, do patriarcalismo e do sistema monárquico. Através da diretora Hussa eles controlam, punem e gratificam. Menos quando Wajda, num instante de sinceridade, revela suas intenções. Tudo que permanecia submerso emerge para seu espanto. Mas continua irredutível. Al-Mansour plantou uma semente.
“Wajda” (“Wajda”).
Drama. Arábia Saudita/Alemanha.
2012. 97 minutos.
Fotografia: Lutz Reitemeier.
Música: Max Richter.
Direção/roteiro: Haifaa Al-Mansour.
Elenco: Reem Abdullahn, Abdullrahaqman Al Gohani, Ahd, Waad Mohamed.