A perversidade e a obtusidade neoliberal de Paulo Guedes

As afirmações do ministro da Economia do governo Bolsonaro, Paulo Guedes, de que “o chinês inventou o vírus” e produziu vacinas de baixa eficácia, e que a longevidade é insustentável para os cofres públicos, traduzem uma ideologia que não tem razão de ser no século XXI. Para ele, como o Estado “quebrou” o setor público não terá capacidade de suprir a demanda crescente por atendimento na área da saúde. “Todo mundo vai procurar serviço público, e não há capacidade instalada no setor público para isso. Vai ser impossível”, afirmou.

O conceito de Estado e o seu papel nas sociedades republicanas são debatidos há tempo suficiente para se entender o sentido dessas afirmações. A ideia de que o mercado se sobrepõe à organização política tem um viés autoritário e excludente, a premissa de que uma classe social fundamental tem o direito natural de impor o seu ditame sobre outra. A democracia pressupõe a equalização dessas classes, o ideal de igualdade como base para a liberdade.

A Revolução Francesa proclamou essa verdade-síntese, a verdade política fundamental de igualdade social como pressuposto da liberdade. A negação dessa proclamação na prática implica desigualdades sociais e, consequentemente, deformações do conceito de democracia. As afirmações de Guedes são a prova acabada desse conceito autoritário, um ditame que ganhou escala com a consecução do projeto neoliberal como resposta à crise aguda do capitalismo que se manifesta mais intensamente desde meados da década de 1970.

Sua ideologia ignora conceitos elementares da convivência democrática, como a correspondência entre produção de riquezas e distribuição de renda. A uns é dada toda condição para desfrutar de grandes rendas e a muitos somente a cota de sacrifícios, sustentados por ganhos irrisórios, além dos que vivem à margem da cidadania, sem direitos básicos e, por conseguinte, sem poder aquisitivo e sem cidadania. A ausência do papel do Estado como equalizador dessas diferenças é o fundamento principal do projeto neoliberal.

Para ele, o aumento da produção de riquezas, decorrente do avanço tecnológico e das técnicas de organização do trabalho – a chamada produtividade –, não entra na contabilidade da distribuição de renda. Essa premissa explica a ideologia proclamada por Guedes, uma vez que o projeto neoliberal defende que o Estado deve servir prioritariamente aos detentores do grande capital. A abstração rentista da ciranda financeira, apartada do setor produtivo, agrava substancialmente as perversas decorrências dessa ideologia.

Aqui está, de forma cristalina, a essência das afirmações de Guedes. Além da falácia sobre a quebra do Estado, sua obtusidade política contrária à civilização e à democracia resulta em agressões à lógica, como esse ataque à China. O obscurantismo neoliberal leva à radicalização ideológica a ponto de se negar obviedades ululantes sobre o vírus e a vacina. Na ânsia por exercitar seu pendor de falastrão vazio e estridente, Guedes não tomou sequer o cuidado diplomático de medir as palavras ao se dirigir a um país com a importância que tem a China para o Brasil.

O Brasil tem um acúmulo democrático de razoável proporção, bem lavrado na Constituição. A cultura democrática do povo está de certa forma desenvolvida para entender que afirmações como essas são tão graves que podem ser vistas como ameaças à vida, à medida que se trata de uma intenção declarada de não socorrer as vítimas dessa política genocida. Para esse projeto de poder, a escandalosa dívida social brasileira deve permanecer intocada, constatação que por si mesma conclama uma ampla mobilização para pôr fim a essas perversidades.