100 anos da Semana de 22: Oswald de Andrade e a Antropofagia (parte 1)

Escritor compôs um quadro alegórico e metalinguístico da miscelânea cultural, da “feijoada” brasileira

Oswald de Andrade (1890-1954), o mais radical dos modernistas que participaram da Semana de Arte Moderna de 1922, no Theatro Municipal de São Paulo, buscou no folclore e na história do Brasil os temas para a sua antimitologia poética, que opera, pela demolição paródica da nossa tradição épica e lírica, uma dissecação crítica da realidade nacional. Pau-Brasil, seu primeiro livro de poesia, publicado em 1925, com ilustrações de Tarsila do Amaral, concretiza essa estratégia de linguagem: os poemas da coletânea são concisos, cheios de humor, sensualidade e plasticidade cubista; o poeta adotou recursos do futurismo, como as “palavras em liberdade”, a supressão da pontuação, o uso de neologismos e a disposição geométrica dos versos, e técnicas de planos e de montagem do cinema. Oswald compôs um quadro alegórico e metalinguístico da miscelânea cultural, da “feijoada” brasileira, se apropriando, numa bufoneria desnudadora, do discurso quinhentista, do dialeto caipira, da fala dos negros e do estilo pomposo do beletrismo bacharelesco.

Nesse cenário de miscigenações, aparecem os conflitos entre o arcaico e o moderno, a herança colonial e as inovações como o telégrafo sem fio e os postes da Light. Oswald descobriu o barroquismo visceral da cultura brasileira, toda ela erigida sobre contraditórias interações entre diferentes elementos históricos. Essa composição antitética se expressa pelo uso do ready-made, à Marcel Duchamp (“Confeitaria Três Nações”), pelos recortes de citações de Pero Vaz Caminha e outros viajantes e cronistas europeus (“Seguimos nosso caminho por este mar de longo”), pelos flashes de causos populares (“A mulatinha morreu/ E apareceu/ Berrando no moinho/ Socando pilão”). O poeta fez uma cartografia sintética e irônica do Brasil senhorial, católico e agrário, com seus escravos, feitores e donos de engenho, e de seu sucessor, um país provinciano que sonhava (e ainda sonha) com a modernidade de Paris e Nova York, incorporando à paisagem urbana os cinemas e táxis, fábricas e arranha-céus. Esse mosaico de um país paradoxal, que emblematizou o carnaval e o pelourinho, o quilombo e o piano de cauda, o vestido de chita e o disco de fox-trot, inseminou, mais tarde, o projeto estético e ideológico da Antropofagia, e, nos anos 60, o Tropicalismo, o Cinema Novo e o Teatro Oficina. A contraparte da visada crítica oswaldiana é a sua descoberta das belezas do Brasil: “A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre dos verdes da favela são fatos estéticos. O Carnaval do Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança” (do Manifesto Pau-Brasil, publicado no jornal Correio da Manhã em 18.03.1924). Em oposição à solenidade clássica, o “vômito de mármore” parnasiano, propunha: “A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos” (idem).

Em vez do vício tropical de importar modelos literários europeus, numa valsa de dependência submissa, o objetivo do ideário de Oswald, indiciado no nome de seu manifesto, era lançar as bases de uma arte para exportação. A emancipação estética de nossa poesia seria alcançada pela fusão das mais elaboradas inovações formais disponíveis na época, digeridas de modo criterioso, e dos elementos nacionais. “O trabalho contra o detalhe naturalista — pela síntese; contra a morbidez romântica — pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa” (idem). Os princípios construtivos da poesia “pau-brasil” foram prenunciados em Memórias Sentimentais de João Miramar, romance de invenção publicado em 1924. Este livro basilar, construído como uma sequência de 163 fragmentos numerados, utiliza, em seu fluxo narrativo, processos da fotografia e do cinema, como o “flash”, a montagem, e a descontinuidade cênica, como notou Antonio Candido, e abala a distinção tradicional entre prosa e poesia. Seu estilo telegráfico, marcado por elipses e rupturas de sintaxe, utiliza a justaposição de verbos e substantivos, em neologismos como “cosmoramava”, “beiramarávamos” e “bandeiranacionalizavam”, que recordam as colagens cubistas. O texto de Miramar é essencialmente paródico, e contrapõe à invenção semântica expressões de gíria, estrangeirismos, a pronúncia da fala infantil e a linguagem empolada da “retórica jesuíta” (Barthes) dos oradores de província e dos juristas, como no prefácio do livro, assinado por Machado Penumbra, que reaparece como personagem ao longo do romance, em evidente caricatura de Machado de Assis. A saga desse “Macunaíma urbano” (Antonio Candido), publicado dois anos após o Ulisses de James Joyce, é a ponta-de-lança da prosa experimental no Brasil, antecipando procedimentos estéticos que seriam desenvolvidos mais tarde por Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Paulo Leminski e Haroldo de Campos.

No Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade, publicado em 1927, com ilustrações num estilo naif-jocoso do próprio poeta, a poética da brevidade oswaldiana encontra seu ponto máximo de expressão em poemas como velhice (“O netinho jogou os óculos/ Na latrina”), fazenda (“O mandacaru espiou a mijada da moça”), crônica (“Era uma vez/ o mundo”) e o conhecido “amor/humor”, onde a primeira palavra é o título e a segunda, o poema. A gozação paródica dos ícones da ideologia oficial e do academismo literário está presente em poemas como história pátria (“Lá vai uma barquinha carregada de/ Aventureiros”) e balada do esplanada (“Há poesia/ Na dor/ Na flor/ No beija-flor/ No elevador”). O tacape do sarcasmo brandido por Oswald, ao golpear nosso provincianismo, o emboloramento mental de nossas elites, preparava o terreno para a proposição de uma perspectiva utópica, que apontava em direção a uma nova cultura, ao mesmo tempo bárbara e moderna. A ideia (já embrionária na fase Pau-Brasil) de “comer” o que há de melhor na civilização ocidental para a elaboração de uma nova sociedade irá inaugurar outra etapa no pensamento e na criação artística de Oswald de Andrade: a Antropofagia.

“Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi or not tupi, that’s the question.” (Do Manifesto Antropófago, publicado em 01.05.1928.) A Antropofagia foi a expressão carnavalizada, totêmica, da concepção cultural e política do poeta: a emancipação do jugo colonialista pela deglutição ritual, orgiástica, do Dominador. Em vez da hybris tribunícia, operística, dos sublevados, Oswald optou pela alegoria do canibal que devora o inimigo para assimilar suas qualidades guerreiras. A metáfora antropofágica, ao contrário do nacionalismo conservador de Cassiano Ricardo (“triste xenofobia que acabou numa macumba para turistas”), acenou a afirmação de uma cultura plural, de somatória, não excludente, capaz de aglutinar os mais diversos temperos. O movimento, lançado no Manifesto Antropófago, digeriu elementos da filosofia marxista, da psicanálise, do surrealismo, reelaborados na dança primitivista, mas não se tornou uma escola literária, no sentido convencional, com princípios estéticos normativos; permaneceu uma visão poética do mundo, uma feira circense de transvaloração de todos os valores. Que inspirou, no entanto, obras como o Abaporu, de Tarsila do Amaral, Macunaíma, de Mário de Andrade, Cobra Norato, de Raul Bopp e Serafim Ponte Grande, do próprio Oswald.

A idealização do retorno a um estado paradisíaco, a uma Idade do Ouro perdida, não é uma criação original do “antropófago de cadillac”; está presente em todas as religiões e mitologias, e teve desdobramentos no pensamento ocidental, a partir do Iluminismo, nas utopias socialistas do século XIX e em movimentos sociais de cunho messiânico. Oswald reconhece esta herança: “Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. (…) Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Ori Villegaignon print terre. Montaigne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos” (do Manifesto Antropófago). Diferente das construções ideológicas que subordinavam a ideia da redenção social à redução do indivíduo, porém, Oswald culmina a sua utopia com a afirmação anárquica da emancipação sexual, sob a forma política do matriarcado: “Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud — a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama” (idem). A ciranda antropofágica de Oswald de Andrade, porém, teve vida curta, assim como a sua Revista de Antropofagia: em 1929, o crash da Bolsa de Nova Iorque provoca uma crise na economia brasileira e, em 1931, ele e sua nova musa, Patrícia Galvão (a Pagu), filiaram-se ao Partido Comunista do Brasil (que na época adotava a sigla PCB), e a pajelança pelo matriarcado é substituída pelo ideal da revolução proletária, sob a batuta da III Internacional. Serafim Ponte Grande, publicado em 1933, é o ritual de passagem do “sarampão antropofágico” ao engajamento comunista Este romance paradoxal é construído como uma sequência de episódios de diário sentimental, com inserções paródicas e metalinguísticas que abalam o próprio conceito de romance.

Como diz Haroldo de Campos, “o Serafim é um livro compósito, híbrido, feito de pedaços ou ‘amostras’ de vários livros possíveis, todos eles propondo e contestando certa modalidade do gênero narrativo ou da assim dita arte da prosa”. Essa desarticulação do raconto, que incorpora ainda procedimentos microestéticos já vistos em Miramar, como o “estilo cubista, metonímico” (HC) que dilui as fronteiras entre a prosa e a poesia, desemboca no questionamento da própria idéia de livro. Sob outra abordagem, a temática do Serafim, que culmina na metáfora da viagem permanente, já presente nos textos de Marx, e no “nudismo transatlântico”, expõe a faceta libertária do projeto antropofágico, quatro décadas antes da revolução sexual. O romance foi escrito em 1928, sob o influxo direto da Antropofagia, mas sua publicação só aconteceu cinco anos depois, quando Oswald de Andrade já decidira ingressar nas fileiras da militância revolucionária marxista. O prefácio de Serafim é um verdadeiro manifesto, em que o autor se despede do ideário canibal-vanguardista e declara sua nova profissão de fé: “A situação ‘revolucionária’ desta bosta mental sul-americana apresentava-se assim: o contrário do burguês não era o proletário — era o boêmio! As massas, ignoradas no território e como hoje, sob a completa devassidão econômica dos políticos e dos ricos. Os intelectuais brincando de roda. De vez em quando, davam tiros entre rimas. (…) O movimento modernista, culminado no sarampão antropofágico, parecia indicar um caminho avançado. São Paulo possuía um poderoso parque industrial. (…) Eis porém que o parque industrial de São Paulo era um parque de transformação. Com matéria-prima importada. Às vezes originária do próprio solo nosso. Macunaíma. (…) Enquanto os padres, de parceria sacrílega, em São Paulo, com o professor Mário de Andrade e no Rio com o robusto Schmidt, cantam e entoam, nas últimas novenas repletas do Brasil: ‘No céu, no céu, com sua mãe estarei’ eu prefiro simplesmente me declarar enojado de tudo. E possuído de uma única vontade. Ser pelo menos, casaca de ferro da Revolução Proletária”.

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