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A saga de João Diadorim Rosa

Ambigüidade. Essa é a palavra mais usada para definir a poética de João Guimarães Rosa, escritor brasileiro que neste 2018 completaria 110 anos, vivo fosse. Não sei se ficaria com ela. Mais que ambígua, a palavra do mineiro de Cordisburgo está mais para onírica, vaporosa, espectral, barroca.

Guimarães Rosa - Ilustração: Luhan Dias

Ambigüidade. Essa é a palavra mais usada para definir a poética de João Guimarães Rosa, escritor brasileiro que neste 2018 completaria 110 anos, vivo fosse. Não sei se ficaria com ela. Mais que ambígua, a palavra do mineiro de Cordisburgo está mais para onírica, vaporosa, espectral, barroca. Para este apreciador de literatura que aqui tecla mal articulados parágrafos, Rosa é o nosso mais dileto autor do que se convencionou chamar de 'realismo fantástico' latino-americano, aquele que buscou entender a alma e sentido de ser americano pelas histórias das gentes que aqui se formaram – o que chuta pra casa do chapéu a esquisita classificação de "escritor regionalista". Não é uma opinião inédita, de lavra própria. Outros melhores já a emitiram fundamentadamente.

A armadilha simplificadora da ambigüidade reside em que de fato há muito de ambíguo no que escreve o criador de Diadorim e Riobaldo. A começar justamente por Diadorim: mulher-macho sim senhor das veredas do grande sertão (olha a ambigüidade de novo!). Mas… se chegamos mais perto; se mordemos as iscas deixadas pelo autor, vamos percebendo, descobrindo, à força de muito reparar, que é mais que ambivalência, mais que tic-tac, o que temos diante dos olhos: ao fixar a atenção, vimos vir emergindo do texto de Rosa uma dialética radical de inumeráveis e insuspeitadas forças em confronto – nos vocábulos, nos nomes, nas personagens, no espaço.
Num único trecho de prosa roseana, adensam-se miríades de referências, que, em luta, acabam por condensar-se em vapores, eflúvios, a formarem uma imagem cambiante, feita de múltiplas ambigüidades que se combinam e recombinam. Quando o leitor acha que apreendeu o sentido, há uma recomposição de elementos, e a imagem se esgarça ao toque, foge, para se refazer, mesma e outra, mais ao fundo, mais além.

Diadorim talvez seja o mais acabado exemplo: Deodora, que é de onde vem o apelido Diadorim, significa "dedicada, dada a deus, ao divino". É um jeito diferente de dizer Teodora ou Dorotéia. O nome próprio, por si, já dá pano pra manga. Já o apelido, esse torna-se um condensado de sentidos: diabo, querubim, dia, luz, dor, doação, recusa, negação, afirmação, diábolo (o que divide, cinde, nega e nega-se), símbolo (o que une, liga, afirma e afirma-se). A personagem é a realidade cambiante, a verdade que foge à captura inteira, porque a verdade não é o esperado segundo a convenção, mas uma 'tocata em fuga' de sins e nãos que se atraem e se repelem. Diadorim tem a mesma natureza das aparições, das fantasmagorias dos serões sertanejos – um pé na realidade e outro na fantasia. Pés que, incessantemente, trocam de canoa conforme deslizam sobre as águas dos rios da verossimilhança.

Essa realidade fugidia, que é a verdade mesma de todas as coisas tocadas pela palavra roseana, relaciona-se ao conceito de travessia que perpassa a obra do escritor. Dirá Riobaldo, encerrando sua narrativa em Grande Sertão: Veredas: "O diabo não há! É o que eu digo, se for… Existe é homem humano. Travessia". O conto 'A terceira margem do rio', em que um pai de família resolve fazer-se ele mesmo margem e viver o resto de seus dias sobre um rio, numa canoa, é uma engenhosa alegoria deste conceito, que também será entrevisto nos contos de Sagarana – "A hora e vez de Augusto Matraga", "O burrinho pedrês", etc. – e nas novelas de Corpo de Baile, com destaque para "O recado do morro".

A vida para Guimarães Rosa é concebida tal qual uma travessia, uma passagem. Tudo vige em mudança de estado (assim como o vapor, expressão da água que evola-se para fazer-se gás invisível, as imagens à gaze dos fantasmas de Rosa são essa travessia do aqui para o além, desta margem à outra do rio). Tudo está num vir a ser. A única permanência é o sertão, personificação do tempo – essa constância medida pelas inconstâncias; essa amplidão eivada de veredas.

De onde vem isso? E a que isso serve?

Alguns dirão que a literatura para nada serve; que ela não se encaixa, até se opõe ao conceito capitalista de útil. Muitos dirão que Rosa está acima de particularidades ideológicas, marcadas espacial, temporal e sociologicamente. Alguns mencionarão seu ecletismo posto a serviço de sua verve inventiva.

Uns podem ter alguma razão. Não toda. Mas alguma. Outros, nenhuma.

João Guimarães Rosa, muitos sabemos, era chegado no que chamamos de "ciências ocultas". Em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, 1967, usa o termo "plano terreno" para se referir ao acadêmico que sucedia, João Neves da Fontoura, quando vivo. Evidente kardecismo. No mesmo discurso cita, do Bhágavad Gita, texto hindu, passagem em que Krishna instrui Arjuna. Diz o deus indiano: "Choras o que não devias chorar. O homem desperto nem pelos mortos nem pelos vivos se enluta". O 'homem desperto', aqui, é o iniciado nos segredos do hinduísmo, para o qual a vida é um estágio cujo fim é aperfeiçoar o espírito, a fim de elevá-lo a outros patamares de si.

Estudioso de inúmeras línguas e culturas, muitas delas sepultadas pelos usos, ele se compenetrava da cabala, do tarô, dos enigmas ciganos, das simbologias do cristianismo primitivo, da religião egípcia e suméria, dos arcaísmos presentes no português, no alemão e outros idiomas. Era uma cabeça de alquimista – um homem entre a magia e a ciência, entre as novelas de cavalaria e a ilustração, entre a renascença e o barroco, entre o oriente e o ocidente. Se pudéssemos resumir qualquer teoria do conhecimento a uma figura geométrica, a sua seria representada por um círculo torcido: o símbolo do infinito, da eternidade encarnada na pedra filosofal; o eterno retorno; a linha que perpetuamente se atravessa – ou, a perpétua travessia.

O pensamento circular, ou de circuito fechado, é próprio das culturas tradicionais, populares; é próprio das religiões, dos misticismos e dos ocultimos. Tende à valorizar a preservação, a conservação, a permanência. Tende ao mistério, ao insondável, ao dogma.

– Epa! O articulista tá dizendo que Rosa é um…

Conservador? Sim. Esteticamente revolucionário, é verdade, mas, seus fundamentos teóricos e epistemológicos são conservadores, ou, por outras palavras, levam a uma postura conservadora diante do conhecimento, da humanidade e da vida. E seu conservadorismo chega, em contos como "São Marcos", de Sagarana, a expressar-se em acerbo racismo. Racismo, aliás, que também surge em Grande Sertão, particularmente no episódio em que os jagunços confundem um menino negro e débil com um macaco, matam-no e o devoram. Porque, ninguém se iluda, todo grande escritor é um grande pensador. E um grande pensador se filia a correntes de pensamento. Pode até criar uma nova. Mas parte de alguma ou algumas, sempre. Por isso é que Rosa, por sob a frase inusitada, superlativa e pródiga em achados e invenções lingüísticas, capaz de gerar o mais sublime encantamento, está a transportar sua visão de mundo.

– Mas, senhor teclador, faça isso não com Joazim! Gosto tanto dele!

Não se avexe, caríssimo leitor. Todos gostamos. E o que nos consola e anima é que a prosa de Guimarães Rosa, por ser essa dialética que vimos até aqui, lega-nos, objetivamente, independente de suas raízes plasmadas em bases conceituais conservadoras, um instrumento poderoso para entender o humano em sua precariedade, o mundo em seu duplo movimento de rotação e translação, e pasmemo-nos, o Brasil. Porque essa forma de apreender o fenômeno em travessia não deixa de ser algo peculiarmente brasileiro. O que é o nosso País senão um vasto torrão em travessia de uma condição à outra? Do que é feito o Brasil senão de sertão e veredas? Esse nosso lugar a que chamamos, dentre outras mil, pátria, o que é senão essa imagem fugidia que se busca apreender; essa verdade cuja intima verdade está em ser cambiante, qual Diadorim?

Grande Sertão: Veredas inscreve-se no movimento nacional e latino-americano novecentista de busca de identidade e sentido. O romance compartilha o mesmo DNA de Agrarismo e Industrialismo, de Casa Grande e Senzala, de Formação do Brasil Contemporâneo, de Raízes do Brasil, de Macunaíma, de O Tempo e o Vento e tantas outras obras cujo objetivo era alcançar uma síntese totalizante do Brasil. Sem preconceitos, misturando num cadinho imaginário diferentes e até díspares elementos, Rosa talvez tenha encontrada a alma profunda, a raiz mais fundamente enterrada do Brasil. Era seu objetivo? Não poderemos provar. Talvez apenas quisesse falar do ser humano-travessia. Mas, das vez, o sujeito, mesmo equívoco, acerta.