Adrienne Morelato: Maradona e Rivellino

Rivellino se engrandecia de uma maneira incomum pelo olhar de Dieguito, pelo coração de Maradona

Maradona se foi e eu só pensava em como estaria o Rivellino. Pois essa perda para ele deveria ser um choque imenso. É notório o vídeo de Maradona, ainda jovem, dizendo que “cresceu como argentino, mas idolatrando um brasileiro” – e esse brasileiro era o Riva. Talvez uma das declarações mais bonitas sobre o encanto que gera futebol. Os ídolos têm seus próprios ídolos porque um dia também foram crianças. O encanto de um ídolo pelo outro, quando existe, é maior, porque esse encanto acompanha-se de uma profunda gratidão e amor pela trajetória do seu antecessor. Ele se torna o pai, aquele que deu a origem para o seu estilo, o precursor, a inspiração, quase um ser divino.

Neste vídeo conhecido, quem falava não era o Maradona jogador, protagonista e ganhador da Copa de 1986. Quem falava era o menino de 9 anos de idade que viveu em condições miseráveis e que, na perna canhota de Rivellino, via o seu próprio sonho de jogar futebol. Cada lance mágico do Reizinho do Parque na Copa de 70, lances que chegavam em imagens fragmentadas a aquele chico que vivia em condições sub-humanas, sem água potável e com uma família numerosa vivendo em um cubículo, eram um alento! Diante do puro devaneio de cada elástico ou de cada patada atômica de Rivellino, o pequeno Dieguito saia da condição inócua de sobrevivência para a condição de existência. O camisa 11 da seleção de 70 dava-lhe significados e sentidos que ninguém mais poderia lhe dar: a combinação entre o sonho, a esperança e a possibilidade do desejo.

Por tudo isso, Maradona, já consagrado um dos maiores de todos os tempos, quando encontrava presencialmente o seu ídolo, o tratava como rei e até como um deus. Em uma das vezes, Maradona ajoelhou-se e beijou o pé canhoto do Riva, em sinal de respeito e de humildade que, dificilmente, encontraremos em outro consagrado dessa forma. Em um outro momento, Maradona jogou do lado do seu ídolo em um jogo beneficente. Para todos que acompanharam tal espetáculo estava claro: Diego só enxergava dentro do campo o Rivellino. Todas as bolas eram para ele, todos os olhares. Nada mais existia ao entorno. Diante do ídolo, o que é grande retorna à sua abandonada criança!

Na certa, Dieguito desejava ser o Rivellino, por mais que ele tivesse chegado a ser o Maradona. Consigo visualizar nas canchas, as peladas argentinas, aquela criança ao fazer um gol com a perna esquerda tentando imitar o elástico ou aquele chute potente e correndo para o abraço de seus amigos gritando o nome dele. Imaginar ser o seu herói é poder ter direito a uma infância, pelo menos naquele instante, sem nada que a machucasse ou a violentasse, livre da dor e serena nos olhos.

“É que vocês não sabem o que ele fazia quando me via! Podiam ter 50 pessoas: se Maradona me visse, ele só tinha olhos para mim, vinha falar só comigo, fazia festa, vinha me abraçar e me beijar. Era uma coisa impressionante, uma idolatria que eu nunca vi um jogador ter por outro jogador”. Palavras de Rivellino depois da morte daquele que o adorava e que demonstra muito bem o significado de um para o outro.

Rivellino se engrandecia de uma maneira incomum pelo olhar de Dieguito, pelo coração de Maradona. Ele se tornava o maior de todos, “el mas grande”, como Diego mesmo disse no programa De Zurda, segurando as mãos de su maestro, mirando-o com o coração embasbacado, o brilho ingênuo de quem, um dia pequeno na mais odiosa miséria, sentia-se viver e desejava ser aquele que, ali, ele vislumbrava pela arte do pé esquerdo em malabarismo.

E por essa razão, Maradona não se cansava de mostrar o seu afeto a ponto de, em um amistoso no Brasil, sabendo que Rivellino estava o vendo, fez questão de lhe entregar a sua camisa do jogo molhada de suor depois do combate. Esperou-o no vestiário, sem tomar banho e fez ali o ritual mais pleno de significado do futebol: a doação junto à camisa de sua entrega ao jogo, de sua incansável paixão e batalha pela arte que seu mestre lhe ensinara, mesmo à distância. O suor junto ao tecido representava uma parte de sua pele que ele queria que seu professor levasse, como se fosse a prova final do curso à espera da nota de aprovação para a formatura. O sorriso do Riva de contentamento naquela noite, ao pegar a camisa encharcada e ritualizada, fora o 10 que tanto ansiava.

E assim Rivellino também existia quando sentia as reverências do seu discípulo. Nada mais orgulhoso para um professor do que seu aluno crescer até se tornar maior do que ele! É o máximo do sucesso fazer seu aluno te superar, é a glória única e verdadeira. Assim, o Reizinho do Parque sentiu a morte do Maradona como se fosse um pouco a sua própria morte, porque ele nunca mais presenciaria a adoração de seus olhos embasbacados, não haveria um gênio prestando-lhe reverências ajoelhado, não haveria mais festas, abraços e beijos de um homem adulto que, em sua frente, se transformava de novo em um menino de 9 anos.

São profundos os sonhos e os desejos das crianças, eles são capazes de revoluções e mudanças, de progressos, de construções. Sem o futebol doce e elegante do pé canhoto de Rivellino, aquele menino da favela Argentina não chegaria a ser o Maradona. Por isso, o coração do gênio, dono do gol mais fantástico de uma Copa e de um gol mágico com as mãos, golpe de ilusão perdoado pela metáfora poética da cena, transbordava imensa gratidão pulsante quando este estava perto de su maestro. Como ele mesmo disse no programa De Zurda, “o chute desse senhor é um encanto para o futebol, um poema, por isso me apaixonei por ele”.

Não há nada mais lindo do que um aluno grato, do que a gratidão pelo seu professor, seja no que for na vida. Gratidão é tão cara neste mundo que só enxerga a utilidade e o lucro. Ela escorre sorrisos, felicidades, alegrias, flores, perfumes, brilho, poesia. Por isso, a dor de Rivellino hoje deve ser gritante. Vontade de abraçá-lo com o mesmo afeto que abraçaria um pai que perdeu o seu filho.

Rivellino também nunca deixou de ser grato por esse encontro que a vida lhe proporcionou. Ele encontrava a si mesmo e descobria mais sobre quem fora nos olhos embasbacados de Maradona. Quando este estava tentando se livrar das drogas e sofrendo a maior das guerras de sua vida, Rivellino escrevia-lhe cartas para encorajá-lo. Sofreu uma grande derrota contra esse inimigo, é verdade, mas o importante fora que não se ausentara da luta e ainda tinha a força e o companheirismo de quem admirava. Porque talvez o que mais ele necessitava de Rivellino era justamente isso: o carinho e o afeto do seu maestro afirmando aquilo que ele se tornara para o futebol transformado em arte e poesia: “El más grande”.

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