Celso Marconi: Mais filmes da Mostra de Cinema de São Paulo

Leia as avaliações do mais longevo crítico de cinema do Brasil

O crítico de cinema Celso Marconi resenha mais filmes em cartaz na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Neste ano, a edição é on-line, com programação disponível para todo o Brasil.

****

NADANDO ATÉ O MAR SE TORNAR AZUL

Esse filme de Jia Zhang-Ke, Nadando até o Mar se Tornar Azul, é excelente para mostrar que cinema não é a maior diversão. Nem a menor. Realmente, esse tipo de cinema só diverte no sentido de que consegue fazer com que a mente ou alma da gente se sinta ocupada. Inclusive, que se sinta útil. Esse filme não é uma obra tão grandiosa quanto a Fenomenologia do Espírito de Hegel, mas ela não cansa para ser vista. Ela não é chata, não é insossa. Ela é densa. Mas isso principalmente porque foi feita para o público chinês, e não para o público mundial. O público da China vê o filme com facilidade, inclusive entendendo o que está sendo contado. Mas para nós, estrangeiros, o filme é todo falado em mandarim e com uma narrativa durante toda a sua duração. Então, se você não entende mandarim, você é obrigado a ouvir e ler um ou vários longos textos. E isso faz com que você não veja a obra original, mas uma obra com interferência muito grande da legenda.

Nadando até o Mar se Tornar Azul é composto em capítulos, mas na verdade em monólogos de cada vez. A partir de uma reunião de escritores em sua província de origem, Jia Zhang-Ke teve a ideia de realizá-lo. Cada pessoa vai contando a sua experiência e assim temos no conjunto uma formalização do que eles pensam e consideram ser a história política da China a partir do governo de Mao Tsé-Tung. Também eu não me sinto com condições de totalmente julgar o que está sendo narrado, pois para isso teria que ter um mais profundo conhecimento da vida que acontece no país. Zhang-Ke certamente tem a sua posição, mas uma pessoa que viva lá na China é que pode julgar. Nós apenas podemos julgar a forma como o filme se concretiza e mais certos aspectos menos privados.

O filme de Jia Zhang-Ke não é seco, e tem uma imagem poética, inclusive a partir do título, que tem relação com o comportamento de um personagem. É interessante ver como as pessoas se modificaram na China vendo o primeiro capítulo, que se chama Comendo, e praticamente todos se mostram bem nutridos, quando não gordos. Nos anos 60, quando eu estive na China, lá não se viam pessoas assim. Todos, inclusive Chou En Lai, o ministro de Mao, eram magros.

(Olinda, 26. 10. 2020)

****

HOMENAGEM A FERNANDO CONY CAMPOS

Outro momento muito importante do ponto de vista cultural da 44ª Mostra SP, além do curso com Ruy Guerra, é a homenagem ao cineasta Fernando Cony Campos. Três dos seus filmes – Viagem ao Fim do Mundo (1968), Ladrões de Cinema (1977) e O Mágico e o Delegado (1983) – estão sendo exibidos na plataforma do Sesc gratuitamente. Das 18 horas até quase 21 horas, no dia 26, teve uma longa conversa sobre o cinema de Fernando Cony Campos, com a participação de Tânia Alves, Antônio Pitanga, crítica Maria do Rosário Caetano, o filho de Cony, Luis Abramo, e como coordenador o pesquisador e cineasta Joel Pizzini, também moderador.

Foi uma conversa excelente. Apesar dos problemas de interrupção por defeitos técnicos, houve muita conversa boa. Gostei muito de ouvir Tânia Alves principalmente, e todos os outros também me agradaram. Fernando Cony Campos é um dos melhores cineastas deste país, embora seja realmente muito pouco conhecido fora do mundo cinematográfico. Mas seu cinema está aí, é preciso que seja divulgado, como parece que estão pensando agora, segundo comentou Luis Abramo. E essa presença na Mostra paulista será fundamental.

Conheci pessoalmente Cony, penso que no ano 1977, quando seu filme foi exibido em Salvador na mostra em que Guido Araújo promovia Ladrões de Cinema. Um dia, eu estava sentado no bar do ICBA onde acontecia a Jornada e o Fernando, também na mesa, contou para mim detalhadamente toda a estória de O Mágico e o Delegado, filme que ele estava elaborando e lançaria em 1983 com Nelson Xavier e Tânia Alves. Me lembro muito dessa conversa.

(Olinda, 26. 10. 2020)

****

O PARAÍSO DA SERPENTE

Eu gosto do cinema mexicano, pelo fato de que o modo de apresentação dos diretores de lá é visivelmente ligado a um olhar mais diretamente situado na população mais pobre. Enquanto o cinema argentino se volta predominantemente para as camadas sociais mais bem situadas do ponto de vista econômico. Isso pode não ser uma visão correta do ponto de vista estético, mas faz parte do meu olhar cinematográfico. Então, quando eu escolho um filme para assistir, como é o caso dessa 44ª Mostra SP, me atraio por filmes como esse O Paraíso da Serpente, do mexicano Bernardo Arellano. Antes do início do filme, ele apresenta uma mensagem ao espectador e tenta explicar o seu ponto de vista. Entretanto, é claro que só juntando a mensagem do próprio filme é que poderemos entender o que se quis dizer.

O Paraíso da Serpente talvez seja um filme fora de propósito para o século 21. Hoje as pessoas não estão pensando mais no milagre como resolução de um problema do mundo e da sociedade. O milagre vem através da tecnologia. Mas Bernardo Arellano não pensa assim e conta uma estória de uma simplicidade, hoje extraordinária, de um homem que sofre um acidente de automóvel e então é salvo por duas pessoas numa pequena região rural. Quando volta a si não sabe mais quem é. Fica aí e depois começa a fazer milagres e a população termina usando-o, inclusive para fazer com que um galo ganhe uma briga. Numa situação bem antiga, o padre da aldeia termina querendo expulsar esse homem que se transformou em profeta para a população.

Como uma estória tão antiga pode ocupar um filme tão atual? Afinal é assim de certa forma o cinema mexicano. E mostra que o sistema de vida antigo ainda continua. E os filmes devem falar sobre isso. E nessa vila não temos a reprodução do Paraíso. Embora na cena final um casal se encontre num cenário de Paraíso.

(Olinda, 27. 10. 2020)

****

SEGUNDA AULA DE RUY

Tivemos às 18 horas, no âmbito da Mostra de Cinema de São Paulo, a segunda aula do curso que está acontecendo com o cineasta Ruy Guerra e o professor Adilson Mendes. A aula foi dedicada principalmente a Os Cafajestes, e assim ao feminino que é certamente o tema mais presente no cinema e na arte criada por Ruy Guerra, como ficou visível inclusive com Ruy declamando o poema que escreveu e que ficou famoso na interpretação de Chico Buarque. Do ponto de vista cultural, esse curso de e sobre Ruy Guerra é o fato mais destacável dessa 44ª Mostra SP. Na primeira aula, tivemos 204 pessoas presentes e na segunda apenas estavam presentes 93. Claro que a perda é nossa, do espectador.

(Olinda, 25. 10. 2020)

****

AULA 3 DE RUY GUERRA

Essa aula foi sobre a vivência de Ruy em Moçambique, onde ele nasceu e viveu até os 20 anos de idade. Depois de vir para o Brasil, onde fez muitos filmes, voltou para sua terra a convite do pessoal da Frelimo, que mandava lá nesse período. A aula de Ruy se situou em torno do filme que nesses anos ele fez lá, Mueda – Memória e Massacre, que documentava uma festa que acontecia lá e lembrava um massacre que houve enquanto Moçambique era colonizado pelos portugueses. Esse filme deu margem para um debate em torno do que é ou não é documentário, pois Ruy classificou esse filme como a primeira ficção feita em Moçambique. Ruy, respondendo a uma intervenção de uma pesquisadora, disse que a questão era muito ampla e foi buscar inclusive o pensamento de André Bazin e outros da Sorbonne e falou como a intervenção, por menor que seja da realidade, “falsifica” o documentário. Respondendo também a uma pergunta, falou sobre a presença de Jean-Luc Godard nessa época lá e o que Godard queria ou tentava lá era fundar um cinema no país. Isso é claro que não foi possível, porque não havia recursos. Foi uma aula excelente em torno de Moçambique.

(Olinda, 27. 10. 2020)

****

FINAL DO CURSO DE RUY GUERRA

Nos anos 70, eu assisti a um curso de Ruy Guerra num Festival de Brasília e isso me deu oportunidade de conviver um pouco com esse cineasta. Nesse curso agora acontecido através da tecnologia da internet, temos a chance bem próxima de ouvir e cada palestra é como se fosse dita para cada espectador. Só não temos a possibilidade de conviver e isso é muito limitador.

Essa última aula foi muito mais em torno do trabalho de Ruy Guerra com o escritor Gabriel García Márquez, com quem fez quatro filmes. Um deles foi Erêndira, que realmente é um dos filmes mais latino-americanos de Ruy Guerra. Ele é um sobrevivente do Cinema Novo, sem dúvida é uma das figuras mais fundamentais desse período e muito significativo que ainda possa estar participando não só da produção, mas da compreensão do cinema brasileiro. Se não houvesse os filmes em exibição, essa Mostra de São Paulo, que está se tornando nacional, ganha mais dimensão ainda com essa parte educativa.

(Olinda, 29. 10. 2020)

****

CIDADE PÁSSARO

Esse filme paulista Cidade Pássaro está sendo lançado no Brasil pela 44ª Mostra SP, mas já está em exibição no mundo todo através da plataforma Netflix. Na verdade, é um filme com uma estrutura não de cinema de Hollywood, mas do chamado cinema independente de Nova York. Me lembro as vezes que o pessoal do Cinema Novo, nos anos 60 e 70, às vezes dizia que “esse pessoal de São Paulo não faz cinema bom como o do Rio”, mas isso era sempre “à boca pequena”. Hoje, o cineasta Matias Mariani está mostrando que eles, os paulistanos e paulistas, são ‘geniais’ em fazer cinema. No fazer cinema.

Cidade Pássaro mostra uma linguagem extremamente seca e brilhante para contar a estória do nigeriano que vem a São Paulo para encontrar seu irmão, que se dizia morador da cidade, ensinando numa universidade como professor de matemática. Mariani consegue criar uma linguagem não só realista, mas também belamente poética. São Paulo sempre está presente fisicamente como cidade grande e internacionalizada. Ele brinca com os “frames”, pois numa sequência vemos o rosto de uma moça, num outro segundo o rosto de um rapaz, depois de outro rapaz, e logo vem uma orquestra musical, que então fica na imagem alguns segundos, e logo em seguida vem a cena de dois cantores negros se apresentando; e assim o que quero mostrar é como o diretor mexe com a imagem com uma invejável ebulição, deixando que o espectador se deleite com uma enorme dimensão dramática. Também há uma presença constante do homem e da mulher negros. Mas não é um filme dominado pelos negros.

É uma estória que se passa numa dimensão social de São Paulo, onde se situam os imigrantes, e o filme é então quase totalmente falado em inglês. Isso lhe dá a canja de agradar assim ao público mundial e não só ao brasileiro. Entretanto, não se pode negar que Matias Mariani fez um filme com contexto cultural brasileiro. O tempo todo o espectador sente que está vendo um filme brasileiro, embora com a presença da legenda o tempo todo.

Do ponto de vista da dimensão humana, o espectador deve se sentir tragicamente chocado, pois a cada minuto mais sentimos como vivemos num mundo em que as pessoas se amam, mas nunca sabem até quando. E nem como manter esse amor. A ambiguidade das relações está mais presente do que podemos imaginar. E é então nessa trilha ambígua que caminha o nosso cinema.

(Olinda, 28. 10. 2020)

****

UIVOS SÃO OUVIDOS

Esse é um filme que está na Mostra de São Paulo no grupo Perspectivas Internacionais, de uma simplicidade argumental que nos parece um tanto admirável. E nos deixa admirado pelo fato de que vivemos hoje numa sociedade extremamente ligada à tecnologia e um filme de hoje admite usar uma formulação de pequena fábula e mesmo assim esse filme é enquadrado dentro de um conjunto que nos parece muito sofisticado. Enfim, “Se escuchan aullidos” conta a estória de uma menina que vive numa área onde fica uma companhia de abastecimento d’água e lá o que ela mais faz é andar de bicicleta e entrar em certos lugares sem utilizar os espaços normais. Ela prefere subir numa alta grade para entrar no campo, em vez de usar o portão. E o pai é uma companhia que busca agradá-la e também educá-la. Tudo muito simples e ao mesmo tempo surrealista. O diretor e roteirista é o cineasta Julio Hernández Cordón, os intérpretes são parentes seus e isso se deduz pelos seus nomes. É um longa bem curto, pois tem apenas 68 minutos de duração.

(Olinda, 30. 10. 2020)

Autor

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *