Choram Marias e Clarices

Recentemente, quando Aldir Blanc beijou a face da eternidade, poucas rádios tocaram suas músicas, sobretudo ”O BÊBADO E O EQUILIBRISTA”. […]

O escritor e compositor Aldir Blanc Crédito: Reprodução/Facebook

Recentemente, quando Aldir Blanc beijou a face da eternidade, poucas rádios tocaram suas músicas, sobretudo ”O BÊBADO E O EQUILIBRISTA”.

Alguns ainda devem se lembrar do célebre hino de um dos momentos mais dramáticos e belos que o Brasil inteiro cantou:

”A volta do irmão do Henfil, com tanta gente que partiu em um rabo de foguete…”.

Mas alguns que viveram aquela bela e extraordinária aventura por certo se perguntam:

Qual a razão de sermos  desmemorizados, esquecemos facilmente de nossos momentos de  emoção e até mesmo das horas de alegria em que vivemos juntos ou separados?

E, se esquecemos do que aconteceu ”ontem” – que deveria estar latente em nossas memórias -, como podemos nos lembrar dos tempos pretéritos?

Muitos personagens da História do Brasil estão jogados na vala comum do esquecimento,  vários museus  fecharam e o Nacional pegou fogo. Uma perda imensurável!

E sem falar do que a historiografia oficial se encarregou de ”esquecer”, e por motivos tão óbvios que não vale o exercício da indignação.

Assim, fazemos história e, depois,  esquecemos de lembrar o que deveríamos celebrar ao longo de nossas vidas.

O Brasil é desse modelo: tão emotivo e passional quanto ”esquecido” e negligenciador da própria história.

E não estou falando apenas dos heróis e mártires das lutas libertárias – desde a Inconfidência Mineira, a Revolução Pernambucana, a Independência, as lutas dos quilombolas, a Abolição da escravidão e ou a Revolução de 30 -, dentre outros momentos da Memória Nacional que não deveriam ser esquecidos.

Estou falando de nossa contemporaneidade, do que ainda deveria latejar amalgamado em nosso sentimento de brasilidade.

Assim, quando um especial amigo me telefonou e disse: ”Perdemos mais um vascaíno, o nosso

Aldir Blanc partiu!”, juro que não contive a emoção e os meus sentidos foram tomados por uma irremediável tristeza.

E, por um instante, lembrei-me daqueles tempos estranhos quando a expressão mais determinante de nossas vidas se chamava coragem.

Recordei de alguns camaradas que chegavam mais cedo no Estádio de São Januário para um disfarçado almoço, antes de um jogo do Vasco da Gama.

Nos reuníamos a pretexto da celebração de mais uma vitória no campo esportivo, mas o objetivo era nos atualizar das derrotas no frágil campo democrático naqueles anos de chumbo.

E, em um desses inesquecíveis domingos, ouvimos o camarada Almir Neves, do Comitê Central do Partidão, em tênue   cumplicidade semi-clandestina, transmitir uma notícia tão angustiante quanto estarrecedora:

”Uma viatura do Exército parou em frente da casa, o oficial fardado abriu a porta do veículo, diante das filhas e da esposa, e jogou no chão umas roupas sujas e com manchas de sangue e disse: Manoel suicidou-se!”

A bem da verdade, o metalúrgico Manoel Fiel Filho, foi assassinado sob tortura pelos  agentes do DOI-Codi e teve o suicídio forjado, como um ”atestado de óbito incontestável”. Assim como também mataram o jornalista Vladimir Herzog e sob a mesma alegação do ”atentado voluntário contra a própria vida”.

Naquele instante, estávamos sentados à mesa de costume – Luiz Melodia, Sérgio Cabral (pai), eu e Aldir Blanc – e ouvimos a tenebrosa informação do camarada Almir Neves, natural de São Mateus, no Norte capixaba.

Aldir, a meu lado, possivelmente tomado pela avassaladora notícia, escreveu em um guardanapo um instigante verso que o Brasil  cantaria alguns dias depois com incontida emoção:

“Choram Marias e Clarices”.

Depois, me mostrou o verso e o guardou no bolso da camisa me deixando ainda mais  intrigado e sem saber ao certo o que ele queria dizer.

Para quem não sabe, esses eram os nomes das companheiras de Manoel Fiel Filho e de  Vladimir Herzog, assassinados pelos militares.

Naquele domingo, quase não conseguimos  assistir ao jogo em que o Vasco também foi derrotado, enquanto Aldir se despediu e disse que ”precisa respirar”.

Alguns domingos depois, com Almir Neves proibido de sair de seu apartamento em Botafogo, por ordem da ditadura militar;  Sérgio possivelmente temendo outras derrotas dentro e fora do campo, apenas Melodia e eu ouvimos Aldir cantar quase sussurrando em nossos ouvidos a música que iria emocionar o Brasil na voz inesquecível de Elis Regina:

”Caía a tarde feito um viaduto /

e um bêbado trajando luto /

me lembrou Carlitos…

A lua, tal qual a dona de um bordel /

pedia a cada estrela fria /

um brilho de aluguel…

E nuvens /

lá no mata-borrão do céu /

chupavam manchas torturadas /

que sufoco /

louco /

o bêbado com chapéu-coco /

fazia irreverências mil /

pra noite do Brasil /

meu Brasil…

Que sonha /

com a volta do irmão do Henfil /

com tanta gente que partiu /

num rabo de foguete…

Chora /

a nossa pátria mãe gentil /

choram Marias e Clarices /

no solo do Brasil…

Mas sei /

que uma dor assim pungente /

não há de ser inutilmente /

a esperança /

dança /

na corda bamba de sombrinha /

e em cada passo dessa linha /

pode se machucar…

Azar /

a esperança equilibrista /

sabe que o show de todo artista /

tem que continuar”.

Aldir mostrou a letra assinada por ele e João Bosco e, neste instante, lembrei-me de João Bosco ainda estudante em Ouro Preto –  irmão de um amigo de Ponte Nova, MG, chamado Domingos Sávio Mucci Daniel, o Savinho – quando eu morava na ”Pensão Real”, ao lado da casa de seus pais, na Rua Benedito Valadares.

Nesta ocasião, fui preso pelo Exército por escrever e imprimir em um mimeógrafo, em edições clandestinas, uns livrinhos como  resposta poética aos crimes da ditadura militar, e tinha apenas 18 anos.

A acusação do Exército do Brasil contra aquele menino-poeta-panfletário era de ”cometer crime de consciência” e me levaram algemado em um camburão para o Quartel do Exército em Belo Horizonte.

Hoje, neste confuso e desmemoriado Brasil,  com tanta inversão de valores, ”esquecimentos” e muitas verdades históricas sendo invertidas, e diante desses tempos de pandemia e alucinações oficiais, penso no que vivenciei e no que não é possível esquecer, mesmo que sejam estes tempos tão estranhos quanto os anos em que a ameaça da morte lambia os nossos calcanhares.

Não obstante isto, não vejo mais jovens aos 18 anos sendo presos pelo Exército do Brasil por ”crime de consciência”. Ao contrário, lamentavelmente, muitos estão apoiando a volta do Regime Militar, o retorno do AI 5 e a insanidade oficial como liturgia do poder.

Assim, sem mais jogos em São Januário, sem Almir Neve, sem Luiz Melodia, com Sérgio Cabral, pai (possivelmente envergonhado pela desonra do filho) e com a avassaladora notícia do encantamento de Aldir Blanc, acho que vou acender um charuto Bolivar, abrir uma nova garrafa de Orloff, entrar no YouTube e repetir à exaustão ”O bêbado e o equilibrista” até não mais conseguir me equilibrar.

Excritor Maciel de Aguiar

Maciel de Aguiar – Escritor – macieldeaguiar@yahoo.com.br

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