Claudio Daniel: Seis poemas de Jorge Amâncio

A poesia de Jorge Amâncio é rica e diversificada e inclui ainda experiências nos campos do poema em prosa e do haiku

Jorge Amâncio, poeta carioca que reside em Brasília, realiza uma poesia altamente elaborada, do ponto de vista da construção de linguagem. Ao mesmo tempo, aborda temas sociais, como a violência urbana, o racismo, cenas do cotidiano, o erotismo e, sobretudo, os mitos da tradição oral iorubá, transmitidos há séculos pelos poemas africanos de louvor aos orixás, ou orikis, e as histórias mitológicas, os itãs.

Esse caldo de cultura influenciou não apenas as religiões afro-brasileiras, como a umbanda, o candomblé, a jurema, o tambor de mina – mas também a nossa culinária, danças, ritmos musicais, vocabulário, folclore e outros elementos da brasilidade. A poesia de Jorge Amâncio é rica e diversificada e inclui ainda experiências nos campos do poema em prosa e do haiku (ou haicai), gênero poético japonês de apenas três linhas, recriado pelo poeta carioca com finíssima sensibilidade.

Vamos conhecer agora alguns poemas de Jorge Amâncio, autor de vários livros, entre eles Nós Outr@s (editora Semim).

AO DESPERTAR, A ÁGUA ESTÁ MAIS LIMPA
cavalga
as ondas do mar
sai do rio
como o arco-íris
rodopia
no vento forte

dona
de todas as cabeças
flauta de mulher
toca na corte do rei
cura as pessoas

fecunda
desde a juventude
se enfeita sozinha
come em casa
come no rio
 mãe dos seios enormes
 muitos pelos na vagina
apertada como o inhame seco

guardiã
cria
as crianças

um carneiro
e dança
descontente
derruba pontes
desirmana-se
permanece nos aposentos

de suas tetas chorosas
nasceram dois rios
juntos
formaram o mar
do estomago crescido
nasceram os orixás
as estrelas as nuvens
o sol a lua

mãe do rio
das águas profundas
da casa de Olokum

Iemanjá
é a água
e nada
se pode fazer
sem água
Odoyá

MONÓLITO

I
olhos estrelares
fixos num girassol
giram num céu de vidro
o corpo sólido
rodopia

fogos de artifício
surdos pela noite
esculpem feras
efêmeras tatuagens
radiantes de alegria
rosadas de furor

cambaleiam errantes
entre a criação e o caos
rodopia

II
hominídeos deserto africano
homens-macacos leopardos
pousa o monólito preto
fome morte futuro
osso arma nave

valsa no silencio
danúbio azul
inteligência artificial existência
a quatro milhões de anos
o monólito preto
ultrassom

III
com traje espacial
envelhece
num quarto luís xv
envelhece
vestido a rigor
envelhece
deitado na cama
envelhece

multicolorido
o feto humano
flutua
ao lado da terra

CHAMA DE CINTILAÇÕES DESCONHECIDAS
da profundeza da terra
vales
vulcões
trovões
uma teia em anarquia
água
montanhas
mata
e ruína   

artífice do barro
o sopro
cólera existencial
a crise
um fio em assimetria
plenitude
morte
e idolatria
à profundeza da terra

GRALHA A TUCUPI NO BAR NEON
preciosa
parafernália
de vida pós-morte
cheira mal
o pomar
de frutos venenosos
ele
desce
no quarto andar
de um edifício neon
traça
um compasso de esperma
nu
rola
pelas escadas
toma
chás ideológicos
passeia
entre os sativas do bar
uma gralha
bica os frutos do pomar
índios
degradê neon
fazem
um cocar de penas pretas
servem
gralha a tucupi

HERMENGARDA
à noite
morcegos cagam
na varanda da sala
as pessoas
futicam a fenda
duendes e ninfas
sangram a terra
as bananas
apodrecem na fruteira
galos-enfeitados
na geladeira

ela
borrifada de sangue
desofusca-se
através do espelho
 – um grito pariu –
ametódicas
cabeças-secas
descem das árvores
explodem
na cara de hermengarda

nas mãos
concreto-morto-rebento

O TROVÃO NÃO FALA COM O FARFALHAR DAS PALMEIRAS
vestida de pântano
ossos de carneiro pelo corpo
salpicada de osun  
um andar lento penoso
parece tingida de sangue
dona do ibiri
não dorme
tem sede de sangue
dona do rio
que come muito
corre ao contrário

orixá que não se vê
decanta a vida
faz a morte
faz o bem
divide
a guerra em dois
tem a cura
sem usança de remédios
faz o que bem quer

no olho da morte
não se pode olhar
sabemos o que ela faz
não o porquê
a chamamos em casa
em todos os lugares

ela passeia
 o dono chispa da casa
o estrangeiro foge
ela se diverte
acolá mata gente
aqui as pessoas riem

ave de rapina,
está no mundo todo
mata uma cabra
sem utilizar faca
com uma pedra de raio
mata as pessoas
faz uma cova
detecta os ladrões
evita epidemias
torna as mulheres fecundas

Salúba!
Nanã dá alegria ao mundo
Salúba!
Nanã desperta na alegria
Salúba!

GLOSSÁRIO:
* Osun: vermelho
* Ibiri: cajado, bengala

Autor