A malta não se fez de rogada: aplaudiu o livro e reivindicou anotar nele, ela também, tudo o que lhe parecesse digno de registro
Publicado 15/03/2025 10:45 | Editado 18/03/2025 11:52
Era o ano 84 do século 20. O local, a Escola Estadual Brasílio Machado, na Vila Mariana, bairro classe média da veneranda São Paulo das Várzeas do Piratininga. O regime, ainda o militar, da Ditadura instaurada vinte anos antes. Os atores, um punhado de estudantes secundaristas de diferentes tendências políticas. Os alvos, generais que se agarravam como podiam ao poder, e a diretora da escola, protótipo de Costa e Silva sem AI-5.
Ocorre que faltava papel higiênico no banheiro das meninas. Elas tinham que trazer de casa, ou passavam seus apertos, contando com a solidariedade das colegas.
Os meninos… bem… todos sabemos como são os meninos.
A conversa chegou ao ouvido dos comunas que infestavam a escola – esse que vos tecla, entre eles. Nossa liderança teve uma ideia: organizar um abaixo-assinado exigindo papel higiênico (em ambos os banheiros – sem que os meninos fizessem caso disso, por suposto) e entregá-lo, com toda pompa e circunstância, à já referida malfadada diretora – um nadinha de gente portando um par de óculos numa cara mais azeda que limão bravo.
Quem disse que a sujeita nos recebia? Ninguém, por certo, que Costa e Silva, mesmo de saia, não ia dar trela a terrorista arruaceiro que mal dos cueiros saíra. Com ela a coisa era na chibata, tá ouvindo?
No mesmo pé que chegamos à porta cerrada da diretoria, voltamos para o pátio, e improvisou-se uma assembleia estudantil. Dali a nada, organizamos, para o dia seguinte, o enterro da diretora – e da ditadura, que a gente não ia perder viagem, pois não?
Esse que vos tecla fez as vezes de padre: abriu um rasgo no fundo de um saco de lixo preto, meteu por ele a cabeçorra tamanho sergipano médio, cingiu a coisa pela cintura sei lá com que cinto e saiu laudando em latim macarrônico o caixão fabricado com papelão, no qual se lia, de um lado, aqui jaz a Ditadura Militar, e de outro, aqui vai Terezinha, ou algo do gênero, que era assim que se chamava a megera.
Como chegou-se a isso, nobre e pasma assistência, a partir de simples rolos de papel higiênico? Acontece que comunista é bicho sagaz, e todo competência para fazer de uma banda de limão, ainda que da cara da diretora, litros de refresco do bom.
O pagode começou por um abaixo-assinado, enveredou por assembleias e mais assembleias nas quais se discutia a falta de verbas para a educação, o que tinha a ver com a falta de democracia, lógico, e que se ligava à nenhuma soberania nacional, evidentemente – tudo culpa dos milicos que deram um golpe em 1964 e que cevavam o Cão do Segundo Livro a essa altura acuado na sala da Direção.
Conquistado o papel higiênico, veio o Termidor de Dona Terezinha, chispas de ódio nos olhos miúdos: doravante, em cada sala de aula, figuraria um livro de ocorrências, para que professores anotassem as rebeldias e faltas de compostura daquela gentalha súcuba a quem davam o título de estudantes.
A malta não se fez de rogada: aplaudiu o livro e reivindicou anotar nele, ela também, tudo o que lhe parecesse digno de registro.
“Isso, jamais!”, bradou a guardiã da Pátria de Coturnos.
Então… os maquiavélicos adolescentes maquinaram… fazer uma fogueira no pátio, tendo por combustível os famigerados livros de ocorrência. Todos os representantes de sala, batido o sinal do recreio, estavam orientados (vejam bem!: orientados!!… Ah, esses comunistas maledetos) a transportar para o pátio o livro de sua sala, herege condenado às chamas da purificação democrática.
A Direção recolheu os livros. Ato contínuo, convocou esse meliante da causa estudantil, acompanhado de Ivan Prado, chefe da quadrilha vermelha. Esperava-nos a Polícia Militar, no saguão da Secretaria. Lá estava a harpia, apontando-nos com sua garra de bruxa do espelho espelho meu.
O soneto da diretora saiu de pé quebrado, todavia. Nova onda de protestos tomou conta do Brasílio. Em estado de assembleia permanente, estudantes paralisaram as aulas, bloquearam as entradas, e exigiram a queda da diretora, em meio a palavras de ordem de Abaixo a Ditadura, Fora o FMI, Um Dois Três Maluf no Xadrez, e Pra Ficar Completo Figueiredo e Delfim Neto.
A diretora foi transferida, ou promovida a supervisora de ensino. E o Brasílio Machado lotou quatro ônibus que se dirigiram a Brasília para ver a posse de Tancredo – que, ao cabo de tanto baticum, acabou sendo a do Sarney.
Mas tem nada não: a luta, teimosa, continua.