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Gustavo Felicíssimo: Encontro com Urariano Mota

Sou o tipo de leitor que gosta de conhecer pessoalmente os escritores que admira. Esforcei-me para provocar um encontro com o Gullar, e ele foi à altura do que esperava.

Por Gustavo Felicíssimo*

Urariano Mota

Quando fui a João Pessoa lançar um livro do Astier Basílio, o que mais me interessava era conhecer o Hildeberto Barbosa Filho, de quem sou hoje amigo e editor. Por intermédio de Silvério Duque travei contato com Antonio Brasileiro, poeta de minha mais profunda admiração e de quem também me tornei amigo e editor.

De Urariano Mota eu me aproximei após ler o seu ótimo livro de crônicas Dicionário Amoroso do Recife, publicado pela valente Casarão do Verbo. Livro este que me foi presenteado pelo poeta João Filho. Nele há passagens marcantes, as melhores são justamente aquelas em que o escritor fala sobre escritores. Encontrei na obra um verbete sobre Alberto da Cunha Melo, onde o autor de Yacala é chamado de “a dignidade da poesia”. No texto, Urariano desvela o lado humano e humanista de Alberto, de quem foi grande amigo de uma vida inteira. Assim, posso dizer que o responsável pelo nosso encontro foi a admiração que nutrimos mutuamente por aquele grande poeta pernambucano, seguramente uma das montanhas do nosso tempo.

Nosso encontro se deu em 2016, no Bar do Peneira, em Olinda. Eu estava de passagem por Recife e encontrei a página pessoal do Urariano no facebook, oportunidade em que lhe falei que gostaria de conhecê-lo, no que fui acolhido prontamente. No entanto esse encontro teve aspectos muito peculiares. Comunista convicto, e assim, desconfiado por força da opressão e perseguição que sofreu durante os anos de chumbo, me conta a sua filha Luanda que o “velho” jornalista se preocupou um pouco. Ora, diria ele, será que isso não é uma armação para me sequestrarem? Meu salvo conduto foi a poesia.

Mas antes de continuar essa prosa é importante que eu diga que minha mulher não estava nem um pouco disposta a concordar que eu saísse para beber com um desconhecido. Arrumei, então, a desculpa de ir ao estádio assistir ao jogo do Náutico com o marido de uma prima sua, com o que Gisele concordou imediatamente. Mas que estádio que nada. Lá fui eu para Olinda.

Cheguei ao Peneira um pouco após o combinado. Ou, como dizemos, no fuso-horário baiano. E Urariano, pontual como só ele, ansioso. Já bebia o seu uísque. E não demostrava estar com aquela preocupação. Levei comigo o meu exemplar do Dicionário Amoroso do Recife, para que ele autografasse, e também alguns títulos de minha lavra para lhe presentear.

Corria o mês de setembro. Mas nos Quatro Cantos de Olinda parecia que fevereiro batia à porta. O frevo dava o tom às caravanas de políticos que por ali se encontravam, uma vez que em outubro haveria eleições municipais. Mas aquela gente toda, num entra e sai danado, não atrapalhava a nossa conversa, cujo ponto fulcral girava em torno de literatura e futebol, mas quem em qualquer sentido dava no porto seguro que é Alberto da Cunha Melo. Afinal, é fácil falar de um grande poeta quando se conhece um pouco de poesia. Fácil falar de poesia quando se tem um interlocutor que compreende as angústias de um poeta.

Então mostro a Urariano a elegia que abre um de meus livros e percebo seus olhos encharcados. E como acredito que os escritores são sim, como afirmara Shelley, os verdadeiros juízes dos escritores, tomo um gole e digo para mim: ganhei o dia. É que, para um poeta, tocar a alma de um seu semelhante é a maior vitória. Ainda mais se esse seu semelhante é uma pessoa de sua mais alta admiração.

E assim a tarde escorreu mansa e morna entre nós. Ora falando sobre literatura, ora falando sobre futebol. E quando nos percebemos embriagados, nos colocamos a descer em direção ao Carmo, cada um em busca dos seus, mas quase em silêncio. Saí daquele lugar com a sensação de que a literatura havia me dado mais um amigo incondicional, como, aliás, ela fez tantas vezes.

Levei comigo a sugestão de publicar pela Mondrongo o livro Do que Foi pra Ser Agora, de Ñasaindy de Araújo Barret, o que fiz em 2017. E foi justamente no lançamento deste livro que Urariano me presenteou um exemplar do seu novo romance, o ótimo A Mais Longa Duração da Juventude. Foi lendo-o que as melhores impressões a respeito do autor se renovaram em mim.

Mas vou retificar ao leitor desavisado e dizer que A Mais Longa Duração da Juventude é um romance de quase ficção. Explico: é que a essência que engendra o engajamento não desapareceu da vida Urariano Mota. E se esse engajamento sumiu da vida de muitos escritores, a culpa é dos que se deixaram alienar com a renúncia política diante da miséria humana e do empobrecimento das instituições, incluindo aí os partidos políticos e, sobretudo, os políticos.

É de se especular, então, que o romance em questão pende para o panfleto, justamente por resvalar no campo da luta, aspecto que nos decepciona em nove entre dez obras escritas sob a luz das ideologias. Não é este o caso. Salvam-se o texto e o ficcionista no terreno escorregadio da ficção de fundo histórico, solo fértil para interpretações nem sempre trazidas à luz sem qualquer mácula. Antes, como aponta o também escritor e jornalista José Carlos Ruy, é na textura da escrita que o real vira imaginado, e o imaginado assume as formas do real. Isto porque o autor sabe como poucos mesclar memória e ficção.

Assim, entre o real e o imaginado, entre o biografismo e a ficção, entre o sonho revolucionário e a ação do tempo, o que sinto em A Mais Longa Duração da Juventude é o narrador, que em última instância, como queria Saramago, é o próprio autor, dando testemunho, pois, ciente e consciente do seu papel, aponta a sua seta e dispara a palavra no âmago de muitas perguntas sem as respostas para aqueles que deixam a história sem réplicas às versões esdrúxulas. E o faz, muitas vezes, em tom confessional, como por exemplo, quando o narrador comenta a falta de recursos do movimento revolucionário, olhando a história em retrospectiva, quase em tom de desabafo, diz que “Tudo era frágil e grandioso (…). Com tão pobres armas (um mimeógrafo) íamos derrubar a Ditadura e o Capitalismo, nessa ordem” (p. 69).

Quero dizer, ainda, a respeito de A Mais Longa Duração da Juventude, que este é um livro escrito, sobretudo, com arte e engenho, onde a linguagem e os vícios do jornalismo (já que é o autor um jornalista de ofício) não se sobrepõem aos elementos da ficção, prova inequívoca é o capítulo inicial, escrito em linguagem poética, onde o texto explode em imagens e metáforas para a evocação de um passado recente, onde adianta o autor que falará de um tempo 47 anos depois.

Este capítulo inicial, que pode não ter sido o primeiro escrito pelo autor, cumpre a função de transportar o leitor para o ambiente desejado, trata-se de um estratagema para prender-nos a atenção. A leitura começa devagar e hesitante, pois não estamos acostumados ao tom de voz do romancista e seus hábitos sintáticos, mas temos um bocado de informações para guardar, como lugares, datas, fatos e nome de personagens que nos vão sendo apresentados. A cidade do Recife dos anos 70, onde a obra está ambientada, vai sendo revelada aos poucos, o Cine São Luiz, o Recife Antigo, o Bar Savoy, o bairro da Boa Vista, a Rua da Moeda, os bordéis, as pensões, parece que ouvimos Manuel Bandeira em Evocação do Recife.

Outros autores, em seus capítulos iniciais, como o Raimundo Carrero, por exemplo, apenas para ficarmos com mais um autor pernambucano, nos jogam direto dentro da ação. Mal abrimos o livro e os fatos estão acontecendo. Mas a escolha de Urariano Mota para a história que ele conta não deixa dúvidas de que foi a mais acertada, muito embora seja apenas uma escolha estética.

E o final do livro também é de uma beleza lírica, ainda que melancólico, com poucos precedentes na literatura brasileira contemporânea. É um redemoinho que leva o leitor de volta à ambientação inicial da obra, como a mais que exausta metáfora do rio correndo para o mar, mas, aqui, a mais exata que se pode invocar. Ou melhor, como o Capibaribe e o Beberibe se encontrando para formar o mar. Assim é A Mais Longa Duração da Juventude, do meu amigo fraterno Urariano Mota, uma incansável e emocionante produção de sentidos, que chamo de humanistas, ligando uma ponta a outra na leitura da história que se quer ficção. Ou da ficção que se quer história. Quase uma. Quase outra. E fim.

* Gustavo Felicíssimo, cronista e poeta, é editor da Editora Mondrongo. É autor de Carta a Rubem Braga (2017)