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José Varella: A varja, a foice e o martelo

Tributo à “criaturada grande de Dalcídio”, na pessoa de Alfredo, ícone das crianças da beira do rio (netos adotivos do autor).

O menino na escola da beira do rio
Cartilha de ABC: professora e juiz de fora
Bonita normalista falando bom português
Justiça dos homens pelo amor de Deus!…
Ivo viu a uva a cartilha dizia
A uva: repita, menino… Ivo viu a uva
Dizia em bom português a normalista bonita
Uma ova!
O menino não cria no que não via
Viu? Não viu?
Ivo tinha visto a fruta cobiçada
Que o menino do mato não viu.


 


 



O menino ribeirinho viu o rio
A árvore folheada de aves guarás
Pintura de sangue vivo sobre campo verde
Sonhos da primeira manhã
 Pesadelos da primeira noite do mundo
O fundo do rio
A cobra grande Boiúna
O mistério profundo
Lago encantado
Machado de pedra de raio
Verde infância da varja
Verdejante estirão pra a Cidade
Verdade ou não
Remanso manso ou caldeirão
Garças cheias de graça
Paisagem com pés de miriti
Cupuaçu
Caroço de tucumã
Escravos de Jó jogando catimbó
Crack e guaranã
Açaí
Bacuri…


 


 


Ou zás! O pau te acha!
Desgraça pouca é besteira:
Jararaca atrox ou Bothropos marajoensis.


 


 



Paricá, diamba e outras alucinações:
O Diabo no fundo da garrafa de cachaça.
Fumaça de queimada ou fumo brabo d'Angola.


 


 



O menino viu a árvore: não viu a floresta
O perigo vindo de fora pra dentro
Não viu…
A normalista viu a bonita cidade onde Ivo vivia
Viu a uva
Bebeu vinho
Comeu maçã com Adão e Eva
Botou culpa na serpente
A floresta encantada
A festa e a fossa
Mas não viu a árvore
A roça
A palhoça onde o ribeirinho vivia
Não gozou sesta a professora bonita
Não viu menino esperto no banho da maré
O rio inventando estórias de cobras e jacarés.
Ivo viu a uva mas não viu peixe vivo
Não pegou camarão em matapi
Não viu o gado nos campos gerais
Não viu.


 



Aquele era dia de tabuada na escola
Sabatina amoada: meninos e meninas aos prantos
Que nem quebranto que a avó curava com reza
Levando palmatoada nove vezes nove
Divido por seis…
Noves fora tirando cinco
Quanto fica, menino? Hen? Distraído!…
Viu ou não viu?
Quê?! A uva, o Ivo… Estavam verdes?
Menino! Cuida da taboada, viu!


 


 



A cidade mandava ao sítio novidades em penca
Além de ABC, professora e bom português
Foi o caso suspeito duma certa bandeira
Encarnada bonita como o diabo
Não era como parecia à primeira vista
Bandeira do Divino trazida pelos devotos
Parecia contrabando dentre outros do costume
O menino prometera a sua avó
Uma saia bonita de fazenda encarnada
Aquela bandeira vinha mesmo a calhar
Mais ainda que tinha enfeite bacana
Professora! Professora!…
De novo a perguntar sobre a uva e o Ivo?
Já disse é fruta que não dá aqui…
Desta vez não, senhora… Esta bandeira
Que enfeite é este?


 


 



O inocente exibiu a foice e o martelo
Todo contente com a bandeira à mão
Viu vermelhar a face da mestra
O espanto nos olhos deste tamanho:
Que é isto, 'seu' comunista duma figa?
Onde arranjou? Quem  te deu?
Epa, epa! Comunistas a solta por aqui…
Sem saber o porquê no rio não dá tubarão
Nem saber a razão que no mar não tem jacaré
O menino da maré viu-se em maus lençóis
Pela fé da mucura
Mentiu sem tremer a cara:
Quem mandou? O Ivo…
Que Ivo? O da uva, professora.


 



O menino nunca “havera” visto foice
Pois lavradores daquela terra não ceifavam:
era tudo roçado a terçado rabo de galo,
Atorado, rachado e lascado a machado de aço…
Ali ninguém plantava trigo nem pra hóstia
Era só a utilíssima mandioca
Farinha d'água, tapioca e tucupi
Não colhiam uva, “vinho” só de açaí.


 



Não sabiam a tal fábula da raposa e as uvas
Só das uvas do Ivo: verdes
A História ainda estava de cueiros…
Tudo ali era estória-geral do Curupira
E da Matinta perera (melhor que La Fontaine)
De martelo o pirralho sabia por ver o pai pregar
Tábuas de caixão da mina de anjinhos
Mortos nas ilhas na safra da malária.


 



Custava, “antão”, Ivo mandar fazenda encarnada
Com enxada e colher de pedreiro desenhadas
Pra fazer saia nova da avó tapuia?


 


 


Em vez de vinhedo e segredo besta
A madura lição natural do açaizal
Matafome de peneira e alguidar:
Bem-comum de todos cabocos e cabocas
Sem granola nem açúcar
Criaturada grande do Dalcídio Jurandir
Índio sutil trazido pela luz do céu tupi-guarani
Portador de machado de pedra de raio
Forja mágica da cerâmica Marajoara.


 


 


Aquele um que caminha sem pressa
Pela margem esquerda do rio
Que nem jaguaretê sobre a confiada presa do tempo
Certo da embiara do futuro
Mais vivo agora o morto de ontem
Do que nós que hoje corremos para a morte.


 


 


Coisas e loisas destas paragens que se não veem na TV
Ivo atirou no que via: acertou no que não via…
Retirantes operários da cidade voltam à terra prometida
Campo onde caboco do sítio vê visagem
Mas não lê ABC direito nem nunca viu a uva.