Tiradentes: a construção visual de um salvador da pátria

Associação entre patriotismo e purgação era o que mais interessava aos promotores da imagem de Tiradentes como herói nacional

Como mitos costumam dizer mais sobre a história que os criou do que sobre si mesmos, o que o mito de Tiradentes diz sobre a história brasileira? É o que a curadora e historiadora de arte Maria Alice Milliet se propôs a responder em Tiradentes – O Corpo do Herói (2001), da editora Martins Fontes. O foco escolhido não poderia ser mais fascinante: as representações visuais de Tiradentes e de sua condenação à forca em 1792, que o transformariam em herói nacional.

A autora começa apontando a República como a responsável, quase um século depois, pela mitificação de Tiradentes. Com o passar do tempo, ele passa a simbolizar a própria “vontade de afirmação nacional”, aparentemente eterna. Mas isso não é novo – e, sim, o exame das sucessivas visualizações do herói até a atualidade. Maria Alice define com precisão os momentos determinantes desse processo e analisa com propriedade os recursos e repertórios empregados nas pinturas, gravuras e esculturas que construíram o símbolo. Não se trata, portanto, de um livro de História.

O capítulo “Tiradentes e a Historiografia” aborda rapidamente as interpretações da Inconfidência Mineira e do papel de Tiradentes nela, desde Varnhagen até autores contemporâneos. Perde aqui a chance de ser mais incisiva, porque Tiradentes, afinal, se tornou “protagonista” da Inconfidência depois de ela ser debelada, já no período do processo judicial, quando decidiu confessar e assumir o movimento.

O grande mentor da revolta contra a Coroa Portuguesa, baseada nos ideais da independência americana, foi o poeta Claudio Manuel da Costa, já morto na época da devassa judicial. Atenção maior ao livro de Kenneth Maxwell, A Devassa da Devassa, teria sido importante para esses esclarecimentos. Mas o objetivo de narrar a posterior formação do mito no imaginário nacional é plenamente atingido.

O que ela observa centralmente é o aproveitamento do conteúdo religioso da história pelos republicanos, o que é duplamente irônico: a Inconfidência não tinha intuito religioso; a República foi inicialmente um regime militar. Mas os anos que passou na masmorra converteram Tiradentes em místico, como ele mesmo declarou: “Prenderam um patriota; executaram um frade!”. E essa associação entre patriotismo e purgação era o que mais interessava aos promotores da imagem dele como herói nacional.

A viagem entre estética e ideologia que se segue é iluminadora. Maria Alice abre antes um capítulo sobre “Tiradentes e a Literatura”, destacando, com justiça, o ciclo de poemas Romanceiro da Inconfidência escrito por Cecília Meireles em 1955. E também se detendo sobre as belíssimas gravuras feitas por Renina Katz a partir do livro, com sua capacidade de criar o drama com economia estilística. Todo um outro volume, naturalmente, poderia ser escrito sobre o assunto, mas o capítulo cumpre seu papel.

Em seguida a historiadora trata da heroização de Tiradentes pelos republicanos, o que envolve questões complicadas. Ela descreve a força do credo positivista sobre o movimento, especialmente a leitura da sociologia de Comte. Nota que Comte era antimilitarista e que uma “operação paradoxal” o acomodou ao ideário do Exército republicano. Poderia também notar que, ao contrário do que muitos pensam até hoje, o positivismo não era uma exaltação da ciência contra a religião – mas uma teoria que pretendia conciliar ambas num sistema totalizante.

Nesses meandros teóricos é que também se pode instalar a eleição de Tiradentes como o mártir precursor da República, uma espécie de santo que encarnou um século antes o desejo de ruptura com a monarquia. Como se vê, aquilo que se chama identidade nacional nasce sob uma bandeira paradoxal e mitificadora. Não à toa, desde então os heróis brasileiros parecem ganhar aura religiosa, como se ungidos para uma missão: salvar a pátria. Por isso, quando falham são execrados.

A República, ironicamente, vê a necessidade de construir um passado. Adeptos da monarquia temiam que o novo regime levasse a uma desintegração da unidade nacional e, dada a educação precária de um povo recém-abolido e mestiço, a uma deterioração moral da sociedade. A máquina simbólica da República é proporcionalmente implacável, como descrito pelo historiador José Murilo de Carvalho em livros como A Formação das Almas (1990).

Busca-se configurar um momento fundador, mas o Estado-nação já era uma realidade – solidificada em guerras como a do Paraguai, uma geração antes – e o desdém ao passado teria um peso fatal. Então se começou a reescrevê-lo de alto a baixo, e o resultado é o que consta de qualquer livro escolar, a chamada “história oficial”. Nessa construção extremamente bem-sucedida, o desejo de autonomia nacional precisa receber um “continuum”, excluindo porém os trunfos monárquicos.

O fervor nativista foi identificado na Guerra de Pernambuco, com a expulsão dos holandeses (simplificação combatida por historiadores como Evaldo Cabral de Mello), na Independência (com a nomeação de José Bonifácio como seu patriarca, não da corte portuguesa) e em outros momentos de conflito com a Coroa. De todos, o mais forte era a Inconfidência, não só por seus ideais republicanos (ainda que fosse uma espécie de movimento separatista conduzido por uma elite que se formara à margem da economia monárquica), mas sobretudo pelos elementos dramáticos que Tiradentes simbolizou tão unicamente.

Nas obras de arte, Maria Alice identifica vários processos da mitificação de sua figura, mas basicamente formam um só: a santificação. Seu rosto barbudo e alongado é aproximado ao de Cristo, dando-lhe um olhar ao mesmo tempo triste e digno, uma promessa de redenção. Em registros clássicos, românticos ou barrocos, e até nos modernos como o do mural de Portinari (1948-49), sua figura é central e agigantada, capaz de suportar “em sua própria carne” os suplícios de um povo pobre e crente.

Em uma tela a óleo de Aurélio de Figueiredo, Martírio de Tiradentes (1893), Maria Alice nota como seu olhar para cima indica a consciência de seu gesto, indica que ele sabe que “seu reino não é deste mundo”. Na aparentemente atípica Tiradentes Esquartejado, feita no mesmo ano pelo pintor oficial Pedro Américo, a autora mostra como, apesar da contundência kitsch da cena, há uma influência de românticos como Géricault.

Todas as imagens, enfim, são examinadas de modo completo, com as devidas comparações e anotações técnicas. O livro, que nasceu de uma tese defendida na FAU (USP), sofre com vícios acadêmicos, como frases pedantes (“sistema semiológico montado a partir da apropriação de signos preexistentes convertidos em significantes de um novo encadeamento”) e excesso de citações. Mas na parte fundamental, a da interpretação das imagens do herói, fica mais fluente. E deixa claro que a cultura brasileira também tem seus fundamentos messiânicos.

Fonte: Acervo do Estadão, com base em reportagem publicada em 2001

Um comentario para "Tiradentes: a construção visual de um salvador da pátria"

  1. Junia disse:

    A partir da década de 70 tivemos Che Guevara , mas ate hoje notamos no pessoal da esquerda o uso da barba como marca registrada. Uma aproximação sutil da figura do Cristo?

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