Saramago: ''Interessa-me a criança que fui''
O escritor José Saramago conta, em seu ensaio autobiográfico “As Pequenas Memórias”, a origem de seu sobrenome. Acoplado ao “lacônico” José de Sousa que seu pai pretendia que fosse, Saramago foi batizado por um funcionário bêbado do Registro Civil de Gole
Publicado 13/12/2006 10:48 | Editado 04/03/2020 16:37
Em “As Pequenas Memórias” o senhor diz que, assim como Leandro, o senhor teve os seus toques de dislexia. O que parecia ser algo incomum entre os escritores, hoje parece muito freqüente, considerando o número de autores que confessa ter algumas dificuldades com algumas palavras. Como o senhor analisa esse fenômeno e qual a importância que ele teve em sua formação?
Os meus problemas não foram os de uma simples e passageira dislexia. O meu problema foi, e continua a ser, o tartamudeio, a gagueira. Aqueles que gozam da sorte de uma palavra solta, de uma frase fluida, não podem imaginar o sofrimento dos outros, esses que no mesmo instante em que abrem a boca para falar já sabem que irão ser objeto da estranheza ou, pior ainda, do riso do interlocutor. Com a passagem do tempo acabei por criar, sem ajuda, pequenos truques de elocução, usar os bloqueios leves como pausas propositadas, perceber com antecipação a sílaba onde irei ter dificuldades e mudar a construção da frase, etc. Curiosamente, se tiver de falar para cinco mil pessoas estarei mais à vontade do que a falar com uma só. Salvo em situações de extremo cansaço nervoso, hoje sou capaz de controlar adequadamente o meu débito verbal. A gagueira, no meu caso, passou a ser uma pálida sombra do que foi na infância e na adolescência. Aprendi à minha própria custa.
O senhor relata no livro alguns episódios de sua vida como adolescente, incluindo nele as brincadeiras com Domitília. Que importância tem e o que significa o sexo para Saramago?
O sexo é. Especular sobre a importância e o significado dele não levará a outra conclusão: o sexo é, e não só é, como tem as suas razões. Não discutamos com o sexo, ele acabará sempre por ganhar a partida. Às vezes, para justificar as nossas tentações, dizemos que a carne é fraca. E não se repara que se a carne cede é porque o espírito já havia cedido antes…
De modo geral, os escritores preferem falar de sua iniciação literária ou da vida adulta quando escrevem a autobiografia. Por que o senhor decidiu se fixar na infância e adolescência?
Nunca escreveria uma autobiografia da pessoa adulta que sou. Creio que me sentiria ridículo e desistiria logo à segunda página. A mim interessava-me a criança que fui, o adolescente que começava a ser, isto é, a pessoa em construção. Interessavam-me a ingenuidade perante o mundo, a desprevenção, a ausência de idéias feitas. E nada disto é possível encontrar no adulto.
Já que falamos de autobiografias, outro Nobel, Günter Grass, acaba de lançar a dele. Tinha dúvidas que numa autobiografia o senhor revelasse ter pertencido à juventude salazarista, algo improvável considerando suas posições ideológicas. Em algum momento o senhor sentiu simpatia pelo ditador?
Chegou a hora de fazer a minha confissão. Eu pertenci à juventude salazarista, que se chamava Mocidade Portuguesa. Pertencíamos todos: alunos da instrução primária, do ensino secundário, do ensino superior, todos sem exceção. Era, por assim dizer, automático. Digo no livro como consegui escapar a usar o fardamento e creio que essa foi a minha primeira vitória contra o fascismo. Mais não podia fazer. E para a revolução ainda era cedo.
O cinema começa a se interessar por seus livros. Como o senhor imagina um filme a partir de Ensaio sobre a Cegueira?
O livro suscita facilmente imagens no espírito do leitor, e isso seria, ao mesmo tempo, um caminho e um perigo: o de fazer do filme uma mera ilustração do romance. Mas, conhecendo, o trabalho de Fernando Meirelles como conheço, estou tranqüilo quanto a este particular. O que peço ao filme é que consiga dizer com mais força o que eu tentei dizer no livro: que há demasiado absurdo no modo como a humanidade está vivendo (e sofrendo, e morrendo) para continuarmos a suportá-lo. Mudar a vida? Sim, com a condição de que sejamos capazes de mudar de vida…
Algumas das pessoas que o senhor conheceu quando jovem, como o sapateiro Francisco Carreira, viraram personagens em seus livros Qual o personagem que ainda não ocupou lugar em sua literatura?
Não vejo ninguém a quem pudesse utilizar nesse sentido, salvo talvez, para não sair das Pequenas Memórias, o barqueiro Gabriel mas teria de inventar tudo, inventar-lhe uma vida que não acertaria em nada ou quase nada com o que terá sido a vida desse homem. Quanto a projetos, rodam-me na cabeça um ou dois, mas nada que valha a pena falar neste momento.
O mundo que o senhor conheceu em sua infância desapareceu ou está em ruínas. Como o senhor viu a entrada de Portugal na comunidade européia e o desaparecimento de culturas regionais em sua terra?
Não desapareceram de todo, mas aquilo em que se vão transformando deve-se menos à influência da União Européia do que ao rolo compressor que é a globalização, da qual me atrevo a dizer que é, com todas as letras, um totalitarismo.
O senhor sempre esteve ao lado de intelectuais brasileiros engajados em lutas políticas. Como viu a vitória de Lula e o que espera desse segundo mandato?
Não preciso dizer que Lula era o meu candidato, mas também não preciso dizer que espero (que exijo…) muito mais dele no novo mandato que agora vai começar. Não discuto o seu direito de afastar-se de Hugo Chávez e de Evo Morales, mas permito-me recomendar-lhe que não vá para a cama todos os dias com o Fundo Monetário Internacional… E que não se esqueça dos problemas sociais do Brasil. Lula já deve ter percebido que o poder não só intoxica, como cega. Abra os olhos, presidente. Sobretudo não permita que fechem seus olhos. Era preciso tê-los fechados, para não ver o que se passava no PT.
Fonte: Diário do Nordeste