Palavra que liberta
Quem passa pela avenida Engenheiro Santana Júnior, próximo ao viaduto que atravessa a Santos Dumont, já deve ter notado um muro pintado e rabiscado. o autor é Seu Alves, sapateiro, que há 25 anos trabalha no local e há 15, borda com palavras e t
Publicado 26/06/2007 11:34 | Editado 04/03/2020 16:37
O pé de castanhola, ele mesmo plantou. Sob a sombra da árvore crescida, dorme eternamente sua banquinha – feita de placas de metal e de aglomerado, sustentada sobre escoras de madeira. Ao derredor, prédios residenciais multifamiliares, avenidas super-movimentadas, grandes empreendimentos comerciais. “Seu Aaaaalves”, grita alguém da janela de um ônibus que cruza a Engenheiro Santana Júnior, na altura da Dom Luís (sentido Praia/Centro). Sentado num banco – entre escovas, tubos de cola, agulhas e dezenas de sapatos e sandálias -, seu Alves, o sapateiro, respira palavras e cores. É vida demais, são idéias demais, registradas em tinta e afeto no muro e na calçada. Seu Alves se inscreve na cidade, faz Fortaleza pulsar. E percebe isso seja quem por ali passa velozmente de carro, seja quem por ali caminha, vencendo a calçada irregular. “Aqui (calçada) foi serviço que eu fiz, comprado com meu dinheiro; tinta, cimento, tudo. O serviço aqui era daquele jeito lá”, aponta para o chão de pedra e areia batida do começo do quarteirão. Um trecho da calçada, seu Alves interditou com portas de um velho guarda-roupa: a pintura no chão tinha sido feita na madrugada do dia anterior. Em tinta vermelha e brilhosa, sob fundo laranja, uma confissão ainda fresca: “Amor, só de mãe”.
A banca existe, naquele ponto, há mais de 15 anos; antes, era na calçada do que hoje é o hipermercado Bom Preço. “A minha história é comprida, cheia de enrolada”, ri. E, enquanto conta, vez por outra se espalha em gargalhada. Seu Honorato Alves Pereira é de 1930 (28 de fevereiro) e de Tauá. Aos cinco anos, o pai morreu – ficou com a mãe e as quatro irmãs, já morando em Flecheiras. Anos depois, a mãe iria se dirigir ao único filho homem: “'Vá trabalhar, que você é o dono da casa'. Olha! Eu tinha 10, 12 anos. Aí eu saí pra Fortaleza, pra trabalhar. Mas agora minha mãe morreu e eu não posso mais fazer nada. Tô emocionado (lágrimas), mas é porque quando falo da minha mãe eu fico assim, emocionado”. Chora, ri, emenda assuntos. Aqui na capital, começou como engraxate. De dia, lustrava sapato na Praça do Ferreira, e, de noite, dormia num dormitório “para meninos e rapazes” na Praça da Estação. “Quando completei 20 anos, um cidadão português me disse: 'Você é muito esperto, vou botar você pra trabalhar na minha oficina'. Aí me ensinou a profissão de sapateiro. Fiz outros serviços, trabalhando aqui e acolá. Mas a profissão ficou comigo”. Foi carpinteiro, ferreiro, pintor de parede, marinheiro; conheceu dez estados. Quando ficou doente, “com negócio de uma hérnia”, se assentou. “Tô com 25 anos que nunca mais trabalhei em outra coisa, só sapateiro”.
Seu Alves se diz “profissional de ponta a rabo”. “Sapateiro é complicado. É igual a médico: tem que desmanchar, cortar, costurar, fazer, remendar. E deixar bonito, pra pessoa não notar. Porque tem doutor que corta o nêgo mas deixa mancha. Como essa aí”, aponta cicatriz no braço direito, ganha há quase 60 anos em uma briga passional (mas ele perdoou a amante: “ela era nervosa e tava menstruada”). Quando começou a se dedicar exclusivamente ao ofício de sapateiro, seu Alves, esperto, arranjou uma forma de se destacar: palavrear o muro. Se, em um primeiro momento, as palavras que se pregavam à parede eram estritamente relativas ao serviço – com horário de funcionamento e preço -, aos poucos a tinta foi formando uma verve filosófica, um corpus de máximas de auto-ajuda, uma quase arte A primeira “palavra” criada foi “Onde o velho fica novo”: “Porque a pessoa chegava com o sapato velho e eu deixava novinho, né?”. Ao lado da placa, pôs imagens de mulheres de biquíni (“A pessoa passava e não sabia se o novo era pela mulher ou pelo sapato, ficava com aquela dúvida”, ri). O caso parou na delegacia e ele teve de retirar as imagens. Exemplo do processo criativo: um dia, chega um cidadão “todo bacana, todo cheiroso”, mas sem dinheiro para pagar o serviço, estava atrás de arrumar emprego. “Por isso aí, fiquei olhando pro jeito dele e aí criei essa palavra: 'Sou amigo do pobre e conhecido do rico'. Porque ele tava todo bacana, mas tava liso, então era pobre”. Mais um hit.
Seu Alves só pinta de madrugada – no máximo, abre exceção para um sábado ou domingo à tardinha, quando tem pouco trânsito de pessoas por ali. Pouco antes da meia-noite, “acorda, escova a boca, merenda” e vai pintar. Bom que sua casa é pertinho, coisa de dois quarteirões do local de trabalho. “De lá pra trás (Dom Luís) eu encerrei, mas aqui pra frente vou fazer mais, vou fazer uma homenagem à prefeita (Luizianne Lins) e algum assunto que aparecer assim rapidamente, criado de idéia. Eu só boto as coisas que sai de dentro de mim. Meu português mesmo mal-feito, mal-escrito, mal-interpretado, mas quem sabe ler…”. Mais uma vez, seu Alves se lembra da mãe, falecida há mais de 30 anos: “'Meu filho, você não sabe ler, mas aprenda. Eu não posso dar riqueza a você, mas se você aprender a ler você vai ser uma pessoa importante'. Eu só fiz até a quinta série, mas me sinto satisfeito”. Na obra de seu Alves, a figura materna grita sua presença constantemente: “Mãe amada, sei que uma mãe é para 100 filhos, e 100 filhos não é para uma mãe”, “Mãe, ti amo muito”, “Para todas as mães seja feliz com o amor de Deus”, “Um beijo mãezinha”, “Mãe, estou chegando”. Diferente do poeta Gentileza, que pintou suas palavras nos muros do Rio de Janeiro, seu Alves não busca transcendência, não busca a poesia dos grandes dramas humanos. Fica com a singeleza, ingênua, de “mensagem de amor, lembrança de família, recordação do passado”.
Para isso, seu Alves usa muitas cores: amarelo-manga, azul, vermelho-sangue. E, além das palavras, faz pequenas “caricaturas” e desenhos. Seu Alves nem se incomoda de ser chamado de “o homem do muro” ou “o velho do muro”. Nada! Ele adora. “Teve uma vez que veio uma moça mais o namorado dela aí: 'Foi o senhor que fez essas palavras do Dia dos Namorados?'. 'Foi.' 'Pois diga de novo'. Aí eu disse foi no pandeiro, cantando pra ela: 'A vida de casado é boa, a de solteiro é melhor. O solteiro vai pra onde quer, o casado tem que levar a mulher'. Porque se não levar… (risos). O namorado meteu a mão no bolso e me deu dez cruzeiros – 'Vou pagar seu almoço, hoje'. Aí eu disse que não tava pedindo esmola”. Como a moça insistiu, seu Alves acabou aceitando o agrado. “Aí comprei duas jacas pra nós fazer doce”, ri. Nesse momento, um cliente interrompe a entrevista, trazendo um sapato descolado. “Você quer alguma coisa? Fale com a minha secretária aí”, responde o sapateiro. Os barulhos muitos – de buzina, de ônibus parando e partindo, de gente gritando na rua – nem lhe incomodam. Seu Alves gosta mesmo é do olho do furacão da muvuca urbana. “Eu sou filho do barulho”, termina. E se espalha em risada. Com o fim da conversa, volta pra sombra da castanhola, pra terminar de costurar um sapato.
Fonte: O Povo