Para especialista, mídia ajuda sistema penal a estigmatizar o pobre
Autor do livro “Mídia e Poder Judiciário”, recém lançado pela Editora Lumen Juris, Fábio Martins de Andrade, defende a realização de um amplo debate da sociedade sobre o papel da justiça penal e do sistema penal brasileiros. Na sua avaliação, o sistema pe
Publicado 06/12/2007 19:16
Confira abaixo a íntegra da entrevista:
Com base nas pesquisas feitas para fundamentar seu livro, quais são as reais possibilidades de os órgãos de mídia exercerem algum tipo de influência durante o trâmite do processo judicial penal?
Em vários momentos pode ocorrer a influência dos órgãos da mídia no processo judicial, sobretudo no penal. Desde o primeiro instante das investigações, com as primeiras notícias sobre as investigações, buscas de suspeitos, prisões quando eventualmente acontecem, pode ocorrer (a influência da mídia) pela divulgação massiva de notícias, normalmente pelo viés acusatório.
Por exemplo, num pedido de prisão preventiva, onde existe um conceito indeterminado, vago, que é a garantia da ordem pública, e onde quase tudo cabe, principalmente, o clamor social; até a sentença, e na decisão final, pode haver implícita ou explicitamente alguns indícios de que efetivamente houve uma interferência indevida da mídia.
Há algum caso concreto que você relata no livro?
Minha idéia inicial era fazer estudos de caso. Cheguei a fazer uma pesquisa, mas como se tratava de uma dissertação de mestrado, eu precisava de um arcabouço teórico prévio, formalidade necessária para contextualizar um estudo de caso. Quando eu fui atrás desse arcabouço teórico, me dei conta de que não havia, no Brasil, uma sistematização desse tema. Então, mudei o escopo, larguei a idéia do estudo de caso e me dediquei à sistematização. Eu busco sistematizar o que temos no Brasil, geralmente, desabafos de grandes juristas, autocríticas de grandes jornalistas. Eu procurei sistematizar e abrir algumas frentes e possibilidades de estudo. A partir do momento em que vi que não havia uma obra que sistematizasse, eu resolvi fazê-la e propositadamente não abordei nenhum estudo de caso.
Na sua opinião, qual o papel hoje ocupado pela mídia no cenário político e econômico do país?
A mídia tem um potencial extraordinário, ela pode ajudar em deficiências culturais e sociais que temos, a partir de informações precisas, notícias realmente informativas. Ela pode esclarecer o sujeito sobre diversos fatos, desde aquecimento global ao direito do consumidor. Isso ela poderia fazer mais detidamente. Mas, no âmbito do processo, o penal particularmente, a divulgação massiva de notícias de caráter acusatório, além de gerar eventuais distorções no julgamento, que podem acontecer, tem um traço pior, culturalmente falando, que é a exclusão do outro, a demonização das classes populares, a estigmatização do pobre. A mídia tem feito isso com bastante intensidade, criando a imagem do pobre perigoso. No Rio vemos isso, e em São Paulo também. O pobre perigoso, negro, que vem da favela, que não tem perspectiva e vai seguir o caminho do tráfico. Esse é um carimbo, um rótulo, um estigma que simplifica questões muito mais profundas, como o papel do Estado na Educação desses jovens. E esse estigma, a mídia não faz só com a classe pobre. Outro exemplo, também nefasto para o país, é a divulgação sobre escândalos políticos. Existe no Brasil um consenso entre as pessoas comuns, de que políticos são todos ladrões. Não é verdade, há um Congresso que funciona, que faz as leis.
Se você fizer um levantamento das leis que o Congresso Nacional aprovou nos últimos cinco anos, você cai de costas. Se comparar com qualquer Congresso no mundo, leis importantíssimas, como a legislação que mudou toda a área imobiliária, de mercado de papéis …
Agora, o povo não tem a menor idéia disso. Esse é o estereótipo carimbado do político que afeta a cidadania. Há pessoas sem estímulo para votar, que não acompanham a política e acham o horário eleitoral uma perda de tempo, quando é o veículo mais legítimo.
Eles defendem um monopólio, para eles o ideal é que somente eles fossem a fonte das informações sobre os políticos, e que nem existisse o horário eleitoral partidário.
Esse carimbo imposto ao político afeta a cidadania, ainda mais no Brasil, um país que possui analfabetismo.
A década de 80 representou, para a América Latina, a transição de sistemas políticos autoritários a governos democraticamente eleitos, com implicações profundas para o sistema de justiça penal. Quais são, na sua avaliação, os parâmetros para se verificar a eficácia do processo de democratização, levando-se em consideração a administração da justiça penal enquanto um dos setores mais relevantes para a caracterização de um sistema democrático?
Existem vários problemas, hoje, no sistema e na justiça penal. Existe uma inflação legislativa, que decorre de uma política criminal geralmente reativa ao sensacionalismo da mídia. Essa política criminal reativa que gera a inflação legislativa tem sido no sentido de endurecimento das penas e do sistema contra os criminosos. Não digo que o sistema penal tenha que ser brando com os criminosos, mas ele deve ser efetivo. O endurecimento a qualquer custo, a partir de uma política criminal reativa, se alinha, por exemplo, à política criminal norte-americana, e não com a da União Européia.
Eu diria que o sistema penal hoje não é nem um pouco democrático. Ele é seletivo, escolhe quem irá pegar e a escolha passa pela condição da pessoa, geralmente, pobres, pessoas inaptas ao consumo, pessoas que não agregam ao movimento de circulação de riqueza e de mercadorias. A mídia exerce uma influência muito forte nisso, na medida em que a polícia criminal é geralmente reativa. Há um quadro que eu mostro no livro, há uma sucessão de eventos: exclusão do outro, construção social e simbólica da criminalidade, demonização das classes populares, sentimento generalizado de insegurançca e, finalmente, política criminal geralmente reativa sob influência do sensacionalismo. Esses fatores contribuem para essa escalada e, no final, você chega à manutenção do status quo, reiniciando o ciclo descrito.
Qual o caminho para tornar esse sistema mais democrático?
O fundamental e mais importante é a educação. Precisamos de uma sociedade educada, de escolas, universidades, com possibilidades e perspectivas. Esse é um problema que vem desde a abolição da escravidão até hoje, não é o problema de um governo A ou B. Eu não me lembro de uma política pública voltada para erradicar o analfabetismo verdadeiramente e levar o cidadão até a universidade. Eu sei que é difícil, mas para mim, começa por aí.
Qualquer medida paliativa ou pontual no sentido de tentar melhorar determinado aspecto, no cenário todo, me parece que não vai corrigir essas distorções. Seria necessário um amplo debate da sociedade sobre o papel da justiça penal e do sistema penal. O que queremos é realmente colocar os pobres na cadeira? Estamos todos de acordo? Obviamente, não é o correto, eu não acredito que esta seja a conclusão de um debate sério. A Inquisição, por exemplo, era o tipo de sistema penal “perfeito”, porque selecionava quais os membros da sociedade que estavam dentro e os demais estavam fora. Havia o manual do inquisidor, que orientava como ele deveria se comportar diante do sujeito, e a confissão deveria ser arrancada, se não fosse, o demônio estava no corpo do sujeito. Ou seja, uma vez caído na teia, não havia saída. É o sistema penal perfeito se você quiser excluir essas pessoas. Neste caso, tem que ter clareza e dizer “sim, minha opção é excluir todas essas pessoas, elas não servem para nós.” É lógico que estou dando um exemplo, eu não acredito, e espero que jamais cheguemos a essa solução absurda, mas nunca houve esse debate sério na sociedade.
Como poderíamos restabelecer valores éticos em casos de corrupção, também freqüentes no poder judiciário. Pela sua experiência, você acha que a reforma do judiciário é um problema de recursos, de informatização, mudanças processuais, ou um problema da concepção do Direito, da natureza dos nossos códigos e da cultura jurídica do nosso país?
Acho que a conscientização, por parte dos poderes executivo e legislativo, do que está na Constituição evitaria boa parte de muitas demandas que estão no judiciário. Leis, medidas provisórias e decretos inconstitucionais e ilegais, isso tudo abarrota o judiciário de tal maneira, que gera a morosidade, o pior problema vivido por todos, e as conseqüências daí advindas.
Antes de uma reforma do judiciário, o primeiro passo seria uma consciência maior do poder legislativo e do poder executivo na elaboração de leis e atos normativos. Se isso fosse feito com mais conformidade à Constituição, poderia abrir campo a uma reforma do judiciário. Não acho que a solução seja aumentar o número de juiz.
Há ainda a discussão da súmula vinculante (mecanismo pelo qual os juízes são obrigados a seguir o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal sobre determinados temas que já tenham jurisprudência consolidada). Sobre esse assunto eu não tenho uma posição a favor ou contra, há um debate desde 1995 e tem duas correntes doutrinárias antagônicas com argumentações fortes. O fato é que ela foi aprovada e está aí. Se ela funcionar para estancar o excesso de recursos e casos que sobem ao Supremo, especialmente pelo dever legal de recorrer das procuradorias de órgãos públicos, talvez seja boa, o que ela não pode é engessar o debate na esfera judicial.
Extratificar o Direito, ele tem que evoluir …
Quanto à repercussão geral (recurso extraordinário que pode demonstrar preliminarmente a transcendência da questão discutida nos autos, sob os pontos de vista econômico, político, social e/ou jurídico), me parece, que o instituto tem uma semelhança com a argüição de relevância do passado, com o writ of certiorari (instrumento processual típico do direito norte-americano, pelo qual a Suprema Corte pode decidir discricionariamente sobre o seu recebimento), mas sou simpático à idéia de que o Supremo deva julgar determinadas causas, não todas, porque não é a função do Supremo. Eu tenho curiosidade de saber como será a aplicação da repercussão geral, se realmente serão pegos casos paradigmáticos e emblemáticos, isso tudo é complicado e deve ser acompanhado de perto pelos advogados.
No Peru, o presidente da República escreveu um artigo sobre democracia, no qual propõe os prazos positivos. O que é isso? Você não cumpriu um prazo é ganho de causa para quem está demandando. Por exemplo, você entra com pedido de vistoria na sua casa, passados 20 dias, o serviço do Estado não veio, está deferido. Essa questão dos prazos é positiva, porque, de um lado, obriga o Estado a se modernizar; de outro, é uma forma de o cidadão se defender do Estado.
Essa questão da burocracia vem da colonização ibérica, mas é uma alternativa (adotar) esses prazos.
Qual a sua avaliação sobre as possibilidades que temos no Brasil sobre democratização e regulação dos meios de comunicação? Toda vez que se fala em regulação, dizem que é censura. Portugal acabou de aprovar uma lei muito mais rigorosa de regulação, e o Canadá acabou de refazer a legislação, muito mais rigorosa, que obriga a concorrência, regula e tem uma série de limitações, culturais, étnicas, sociais, temas ambientais, gênero. Você acha que a TV Pública é algo que pode ajudar neste sentido?
A TV Pública pode trazer uma pauta melhor, agora, cativar o cidadão para que ele assista no lugar da Globo, é complicado.
Irreal.
A Globo, no Brasil, tem proeminência absoluta e exporta novela para o resto do mundo.
As boas coisas que a Globo tem são conteúdo nacional, exportação da cultura brasileira e produção com qualidade, novelas, seriados, filmes, programas, que dizem respeito a cultura do país. Você não pode ser contra às Organizações Globo, contra a empresa, mas contra o monopólio, contra a não regulamentação. Tem que formar uma maioria que defenda o programa e enfrente o debate. Tem que ter dois partidos, com uma plataforma para aprofundar as transformações no Brasil, isso no pós-Lula.
Eu não imagino nada no viés interno da mídia de auto-regulação. A TV pública pode ser um player na tentativa de elevar a qualidade dos programas, um fator de estímulo, um diferencial. Agora, atualmente, na minha opinião, não tem jeito de vir um retorno no modo interno na mídia, via auto-regulamentação ou comissões mistas. No livro, eu faço uma proposta legislativa simples para, paliativamente, começar a resolver os problemas. Não é uma solução definitiva, mas para começar todo o debate que precisa, poderia ser dado um primeiro passo. É apenas um ponto de partida, e não de chegada. A proposta é que o juiz, de ofício ou a requerimento, deverá suspender o processo sempre que entenda necessário para promover um julgamento efetivamente isento de influências externas ao processo ou se ache, por qualquer meio, influenciado em sua livre convicção.
Na sua avaliação, hoje, nós podemos identificar os interesses dos grupos econômicos articulados na mídia? Eu posso dizer que a mídia agenda a oposição, ela pauta a oposição e é a verdadeira oposição ao governo Lula, porque ela é que tem criado uma postura como se o país e o legislativo não tivessem nada de bom. Como se o Congresso Nacional não tivesse feito nada nesses quatro anos, a não ser o problema do sanguessuga, dos vampiros, do mensalão, do caixa 2.
Na minha opinião, a mídia certamente pode contribuir para isso. Não posso te precisar em que medida e quais os interesses dos donos do poder, da família Marinho ou alguma outra se chocam com o atual governo Lula. Não saberia te precisar nesses termos. Mas que ela contribui para insuflar uma percepção geral da sociedade num viés oposicionista, isso ela pode fazer, e possivelmente, pode estar acontecendo agora. Faz parte do manejo de informações. Na medida em que você escolhe determinada notícia para informar, você está ocultando outras, porque o universo de informações é vastíssimo, então, se você escolheu determinada notícia sensacionalista ou não, você está omitindo informações que não tiveram a sorte de ser escolhidas.
Você faz, no seu livro, uma abordagem sobre o jornalismo de investigação …
É um tema complicado. Precisamos, primeiramente, definir que modelo queremos. Jornalismo de investigação do tipo que o Tim Lopes e outros jornalistas fazem, não sei se é saudável, conseqüente ou produtivo. Jornalista não é polícia, nem juiz. Parece-me que jornalismo investigativo nessa linha é exagerado. Hoje, quem está pautando o modelo são os próprios jornalistas, eles fazem do jeito que querem, investigam e divulgam do jeito que querem e isso é usado no processo judicial e pode gerar distorções e desdobramentos indesejáveis no processo. Nesse sentido, eu sou contra esse modelo de jornalismo investigativo.
No caso de Santo André, por exemplo, a imprensa inventou que o Supremo não autorizou que eu fosse investigado, por causa do foro privilegiado. Mentira, foi no mérito, o Supremo analisou.
Houve a censura no período da Ditadura, hoje, parece que o pêndulo está completamente para o outro lado. Estamos numa abertura completa para a mídia, em excesso, inclusive. A sociedade não está consciente que precisamos equilibrar esse pêndulo que está exageradamente para o outro lado. É um poder fora de controle hoje.
Fonte: Blog do Dirceu (http://www.zedirceu.com.br)