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Bernardo Joffily: o dia em que conheci Hugo Chávez

Conheci pessoalmente Hugo Chávez neste sábado (12). Ele passou pelo Hotel Alba, Caracas, distribuindo apertos de mão, para a alegria das centenas de delegados que estamos hospedados ali, para o encontro do Conselho Mundial da Paz (CMP). A seguir, teve

Foi uma oportunidade de conhecer por extenso, sem os cortes feitos pelas agências de notícias, o comandante da revolução na Venezuela. Chávez falou por umas boas três horas. Concluiu dizendo, com um sorriso maroto, que achava não ter excedido cinco minutos. Depois, ainda respondeu a indagações de seus convidados.



O dono do bar e o garçom



No grande saguão do hotel, quase todas as poltronas estavam voltadas para o aparelho de TV. Diante deste, sentados no chão, havia ainda várias dúzias de militantes da JCV (Juventude Comunista da Venezuela), que pouco antes tinham recebido o líder bolivariano com um entusiasmado coro da Bella Ciao.*



Mais tarde, nós brasileiros festejávamos a eleição da conterrânea Socorro Gomes como presidente do CMP quando a TV reproduziu trechos da fala de Chávez. O dono do bar, um português antichavista, baixou os olhos para a caixa registradora. Mas o garçom, com os dois punhos erguidos, demonstrou para toda a clientela o seu entusiasmo.


 


Em pauta, ''o combate de idéias''


 


Eu sempre me perguntava como os venezuelanos conseguem ouvir seu comandate por tantas horas a fio. Neste sábado, fiquei entendendo melhor.



Foi uma fala coloquial como uma conversa entre amigos, entremeada de anedotas, revelações, recordações dos dias do golpe e da juventude, menções à atualidade latino-americana. Todo esse bordado gravitava em torno do tema em destaque, ''o combate de idéias contra o adversário ideológico, com suas poderosas máquinas de desinformação imperialista, capitalista, burguesa''.



''É preciso fortalecer as idéias, usar, vamos dizer assim, os mísseis ideológicos'', diisse Chávez. E logo saltou dois séculos atrás, para citar o seu herói e auor preferido, Simón Bolívar. Lembrou que o Libertador, ao iniciar sua gesta anticolonialista, teve o cuidado de trazer para a Venezuela uma tipografia, e lançar um jornal, pois considerava a imprensa como ''a artilharia do pensamento''.



O estilo Hugo Chávez



A parte final do discurso foi dedicada à ''tarefa dos intelectuais da América Latina'', de ''fazer a mensagem chegar aos soldados''. Chávez contestou o preconceito antimilitar em certas forças de esquerda. E usou fartamente o seu exemplo. ''Dizem que entrei na Academia Militar com um livro do Che debaixo do braço. Eu entrei na Academia Militar sem livro nenhum debaixo do braço. Mas saí dela com o livro do Che''. Aproveita para defender que a Revolução Bolivariana está armada, de idéias, sim, mas também de fuzis.



É um estilo vivo e atraente. Talvez possa cansar quem escute três ou mais discursos destes por semana, mas para mim foi uma agradável surpresa. Vem entrelaçado de tiradas de humor (o que parece ter sido decisivo para conquistar Ignácio Ramonet, do Le Monde Diplomatique), às vezes rindo de si mesmo, e outras de realismo mágico, como a do satélite invisível cubano que cito abaixo. Não reluta em criticar sem rodeis a atividade do seu governo — por exemplo, no caso, a crise de abstecimento de leite, ou a atividade da TV Telesur.



''Empurremos o sol''



''Aqui, hoje, para mim, não há lugar para o pessimismo. Está amanhecendo um novo tempo. Empurremos o sol. O mundo vive um momento interessantíssimo. É uma oportunidade'', afirma Chávez. Este debate se colocou na Venezuela depois da derrota de uma reforma constitucional socializante em dezembro passado, a primeira sofrida por Chávez em 12 eleições desde 1998. Ele hoje fala com naturalidade da ''derrota de dezembro'', termo que em um primeiro momento rejeitava. Mas mostra que já vão longe os tempos em que tinha apenas Fidel Castro como aliado.



Destaca o cenário latino-americano. Cita o brasileiro Lula, que enviou 14 toneladas de alimentos para combater o desabastecimento no Haiti (''um bom gesto'') e diz que a Venezuela enviará 350 toneladas, sendo 50 de carne. Cita a argentina Cristina Kirchner, para asseverar que um governo assim ''faz diferença'' e criticar ''certa gente da esquerda'' que a critica. Cita o equatoriano Rafael Correa, para reforçar a pregação deste por uma organização dos Estados latino-americanos, ''uma OEA sem os EUA''.



Manifesta preocupação com as oligarquias da Bolívia, ''açuladas como cães pelo imperialismo'', e revela que fala toda semana com Evo Morales. Analisa a incursão militar da Colômbia no Equador, destacando a responsabilidade dos EUA e não a da Colômbia e diz que outras provocações virão neste fim de mandato do presidente George W. Bush: ''Vai ser preciso muito trabalho nestes meses, para impedir que George Bush e seus sequazes lancem uma guerra na América Latina'', prediz.



Fidel, ''o artilheiro das idéias''



Se houve muitos elogios a líderes latino-americanos, Fidel teve um lugar à parte no discurso. ''Tenho uma hipótese'', disse Chávez, muito sério, ''de que Fidel não é deste mundo''.



Ele ilustrou a tese contando que, no 11 de Abril, quando ele estava cercado no Palácio Miraflores, com as linhas de telefone sabotadas, o então presidente cubano telefonou-lhe, por meio de ''um satélite invisível que Cuba tem''. A mensagem de Fidel: um estímulo à resistência e a garantia de que ''você não morrerá hoje''.



Chávez também mencionou, e mostrou para a câmera o livro Piratas do Caribe, o mais recente do escritor marxista anglo-paquistanês Tariq Ali, um elogio à atual safra de governantes esquerdistas latino-americanos. Qualificou Fidel de ''o maior dos piratas'' e ''o pirata número um'', e a si próprio de ''um piratinha''. Em outra passagem, chamou o comandante da Revolução Cubana de ''artilheiro das idéias''.



* Canção da guerrilha italiana durante a resistência ao nazifascismo, cuja letra é uma profissão de fé comunista.